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Ciência da Psicologia
Ciência da Psicologia

Mitos e realidades da prática psicológica

A importância da ciência no exercício da profissão, baseada em evidências, e a necessidade de abandonar teorias ultrapassadas

Demerval Bruzzi (CRP 01/21380)

06/02/2024 19h44

Atualizada 07/02/2024 15h26

Já passou da hora dos próprios psicólogos levarem mais a sério a ciência da psicologia.

Nesse sentido, não é mais aceitável que a teoria da personalidade ainda seja atribuída aos temperamentos de Galeno, ou ainda, que psicólogos atuando nas áreas de recrutamento e de seleção ainda utilizem testes como DISC ou MBTI, já que a exemplo da teoria dos temperamentos, não existe NENHUMA sustentação científica para seu uso.

Como já disse em colunas passadas, é preciso uma melhor compreensão, por parte dos psicólogos, sobre as teorias e a história por trás de nossa ciência.

Recentemente, nos mais diversos grupos em que participo nas redes sociais, tenho percebido um aumento no pedido de “escalas” e/ou “questionários” para avaliar os temperamentos de Galeno. Curiosamente, muitos psicólogos têm utilizado a teoria dos temperamentos em ambientes mais religiosos, alguns, inclusive, dando aulas e palestras sobre como lidar com pessoas do tipo Sanguíneo, ou Fleumático, como se nós, seres humanos, tivéssemos tais características como rótulos.

O que esses psicólogos ou “falsos gurus”, talvez, não saibam é a origem da teoria dos temperamentos.

Poucos anos após a morte de Aristóteles, surgem duas figuras importantes, tanto para a anatomia como para fisiologia, trata-se de Herófilo de Calcedônia e Erasístrato de Chio.

De acordo com registros históricos, juntos, eles dissecaram centenas de cadáveres humanos, descrevendo pormenorizadamente diversas partes do corpo e do cérebro humano, proporcionando, assim, um avanço científico inimaginável numa época em que não se mexia com cadáveres, dado o tabu existente a respeito da alma humana.

Dentre as mais brilhantes descobertas estava o sistema nervoso central, que saía do crânio e da espinha e se espalhavam por todo corpo. Mas, mesmo com esta descoberta, ainda se acreditava no espírito abrigado no intelecto humano.

Estávamos indo bem até o nascimento do cristianismo e a volta da ideia de “pecado” para qualquer estudo envolvendo abertura de corpos humanos.

E assim, somente cerca de 400 anos depois, surge Galeno de Pérgamo, médico que viajava da Turquia até a Alexandria em busca dos ensinamentos atribuídos a Herófilo e Erasístrato.

Mesmo sem dissecar cadáveres humanos, Galeno, como médico de gladiadores, aproveitava os ferimentos de seus pacientes para observar, pelas fendas abertas em batalha, o funcionamento dos órgãos. Entretanto, ao criar sua teoria ligada à doutrina ventricular, acabou por fazer uma verdadeira salada com os conhecimentos advindos de Platão e Aristóteles e os saberes provenientes de Hipócrates, Erasístrato e Herófilo.

Galeno acreditava na ideia dos humores como elementos em ação ligados à bile negra, bile amarela, fleuma e sangue. De acordo com sua teoria, havia uma “alma” vegetativa no fígado, que controlava prazer e desejo; uma alma vital no coração, que era responsável pela coragem e pelas paixões; e uma alma racional na cabeça, que dividia o espaço com a inteligência.

Para Galeno, espíritos animais passavam pelos ventrículos cerebrais e, quando, por algum motivo, desequilibravam os fluxos, era preciso realinhar tudo isso por meio de sangrias e purgações. Somente assim, os humores seriam levados de volta aos seus lugares.

Suas ideias foram muito bem acolhidas pelo clero na época que relacionou as três almas de Galeno à Santíssima Trindade.

A medicina Galência perdurou por cerca de mil anos, afastando a medicina da questão do corpo, e, pior, colaborando vorazmente para a ideia do corpo como algo sujo, pecaminoso, indigno de atenção e menos importante que a alma e o espírito.

Somente em meados de 1.537 é que Galeno começa a ser questionado e o corpo volta, aos poucos e de forma discreta, a receber a devida atenção.

Como sempre defendi nessa coluna, psicologia é ciência, e não ideologia ou modismo. E como podemos observar, mesmo que de forma reduzida, os fatos citados apontam claramente como toda ciência sofre um grande abalo com a supervalorização de questões ligadas à fé, ao dogma, à religião, ou ao radicalismo.

A teoria Galência foi, por muito tempo, um obstáculo ao avanço intelectual, contribuindo, inclusive, para degradação da condição física do ser humano, em especial devido ao alastramento da peste e demais doenças na idade média.

Ao que parece, para alguns psicólogos, a história se repete, ou melhor, a história nunca deixou de ser aquilo que eles acreditam que ela deve ser, ou seja, um retrato fiel de suas próprias crenças e valores.

Assim, penso que – antes que tenhamos problemas, como tivemos com as constelações familiares -, seria importante o Conselho Federal de Psicologia e/ou algum conselho de psicologia regional se manifestar sobre o assunto.

Afinal, como abordado, já temos processos seletivos sendo realizados por psicólogos, utilizando ferramentas não aprovadas no SATEPSI, como, por exemplo, o DISC. E se nada for feito, em breve, teremos empresas contratando apenas coléricos para as vendas e fleumáticos para o administrativo.

Até a próxima!

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