Mario Donadio (1999) já proferia a ideia do treinamento tipo A.N.T.A. – Amontoado Nulo de Técnicas Avulsas para criticar “consultores”, hoje também chamados de coachs, que utilizam-se de técnicas nulas e desagregadas da realidade para convencer seu público da efetividade de seu trabalho, quando na verdade não passam de meros apresentadores de auditório, ou, na melhor das hipóteses, bons motivadores.
Aliás, já me referi a este autor em outro artigo publicado na revista Linha Direta, intitulado “Os falsos gurus da educação e o método A.N.T.A. de formação”. Entretanto, o mesmo fenômeno da década de 1980 ainda existe e agora se transveste de “avaliação de perfil comportamental”. Profissionais despreparados e sem a devida formação utilizam-se de ferramentas como o DISC, criadas com base na teoria postulada pelo psicólogo Dr.William Moulton Marston, e baseada em quatro fatores: Dominância (D), Influência (I), Estabilidade (S) e Conformidade (C), que inclusive compõe o nome DISC, realizando “avaliações” na pretensão de diagnosticar ou traçar perfis comportamentais.
Qualquer estudante inicial de psicologia sabe que comportamento não se mede, se observa, e mesmo assim, profissionais de Recursos Humanos, em sua grande maioria psicólogos, utilizam-se da ferramenta DISC em seus processos de seleção, o que além de inapropriado ainda é uma incoerência, já que infringe o código de ética da profissão, em especial sua resolução número 09/2019. Assim sendo, não é de se estranhar que um dos maiores problemas das empresas no Brasil perpassa pela contratação.
É importante elucidar que minha critica à ferramenta é por sua total falta de cientificidade, mesmo que diversas empresas falarem o contrário, sem apresentar as pesquisas que pudessem embasar sua fala. Neste sentido, lembro que a teoria por trás desta ferramenta já caiu, ou seja, não é mais considerada no universo da psicologia, por termos hoje a teoria do Big Five.
A ferramenta DISC é um teste que nós psicólogos chamamos de autorrelato, onde o paciente fala a seu próprio respeito. Esta singela característica por si só já requer do profissional que vai analisar os resultados um tremendo conhecimento da ciência psicológica, uma vez que, fica no ar a seguinte questão: a pessoa avaliada esta falando dela, de quem ela gostaria de ser ou de um ‘eu’ a partir da avaliação da sociedade?
Além de toda cientificidade por trás dos testes psicológicos com base psicométrica, ainda temos anos de estudo na análise clinica a respeito do ser humano, afinal, o que mais nos interessa é a frequência e intensidade com que os “traços” aparecem nos resultados dos mais diversos testes.
É incompreensível ver profissionais da psicologia utilizando-se de ferramentas não fundamentais e aprovadas pelo Conselho Federal, como se fossem verdadeiras soluções para o entendimento do “comportamento humano” nas organizações.
De acordo com a ferramenta DISC, pessoas com Dominância são profissionais com alta pontuação no fator “D”, isto é, são muito ativas ao lidar com problemas e desafios. Baseado nesta premissa, convido o amigo leitor a uma reflexão: de que adianta eu ter contratado um profissional extremamente ativo ao lidar com problemas e desafios, se ele não possui “inteligência” para isso? E para não complicar muito, de forma básica, podemos definir aqui para o amigo leitor, de forma bem leiga, inteligência como sendo a habilidade de resolver problemas com os conhecimentos já adquiridos (mesmo assim, deixo claro que é uma definição simples, apenas como forma de facilitar a compreensão).
Outro ponto importante a ser observado é de que a ferramenta rotula os profissionais avaliados como Dominantes, Influentes, Estáveis, ou aqueles em Conformidade com as regras sociais, como se isso fosse algo nato, estático.
Mais uma vez, sou obrigado a recorrer aos universitários para lembrar aos profissionais que utilizam-se de tal ferramenta que nós não somos, estamos…
Nossa personalidade muda pouco com o tempo, mas aprendemos a nos comportar nos mais diversos contextos. Não somos seres estáticos. Muito pelo contrário: como seres autopoiéticos, aprendemos e evoluímos de acordo com uma série de contextos e características pessoais ou ambientais.
É preciso parar com os modismos nos treinamentos e nos processos avaliativos para contratação de pessoas. Profissionais de RH e psicólogos devem largar a mania de reificar (tendência a converter conceitos abstratos em entidades absolutas).
A insistência e resistência no uso de tais ferramentas retrata a realidade de nosso país, onde disfarçamos conhecimento e damos o “jeitinho” para algo que é saber científico, como nas crenças populares que disputam o saber médico. Nunca é demais lembrar, como bem afirmou Goud (2014), que não foi em um debate abstrato sobre o movimento lunar que mostraram a Galileu os instrumentos de tortura. As suas ideias ameaçaram o argumento convencional invocado pela Igreja para justificar a estabilidade social e doutrinária, onde tinha-se os planetas girando em torno da Terra, os sacerdotes subordinados ao Papa e os servos ao seu senhor.
Criticar a ferramenta DISC hoje é atentar contra a mesma estabilidade doutrinatória do passado. Se no passado a doutrina era atribuída ao Divino, hoje o notório saber aparece disfarçado de “motivação” para atrair aqueles que têm esperança de conhecer a si mesmo em busca do desenvolvimento de seu potencial pleno.
Um bom profissional de Recursos Humanos sabe muito bem que uma boa seleção deve considerar os pilares da personalidade, compostos pela Impulsividade, Adaptabilidade, Intrapessoalidade e Interpessoalidade, além das funções cognitivas básicas, como memória, atenção, e inteligência, e isso, posso garantir, o DISC não tem como entregar.
Assim, é hora de acabar com a crença popular de que se contrata pela técnica e se demite pelo comportamental. É preciso assumir a responsabilidade de que se contratou errado.
Até a próxima…