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Brasília

Vivência e esperança: a história do professor de Química de uma Unidade de Internação Provisória

Ainda jovem, Tiago conheceu Brasília quando viajou à capital, mas voltou para sua cidade natal. Em 2003, começou a dar aulas

Redação Jornal de Brasília

15/10/2021 14h51

João Carlos Magalhães
(Jornal de Brasília / Agência de Notícias UniCEUB)

“Eu achava que conhecia a socioeducação, mas só entendi o que era quando trabalhei com alunos dentro do centro de reintegração”. É assim que Tiago Souza da Luz lembra dos cinco anos em que esteve na Unidade de Internação Provisória de São Sebastião (UIPSS) dando aula de química para diferentes adolescentes que cumpriam pena. 

Para ele, essa foi a experiência mais intensa da carreira de docente, que começou em Belém, capital do Pará, onde o professor nasceu e cresceu. Ainda jovem, Tiago conheceu Brasília quando viajou à capital com uma tia, mas voltou para sua cidade natal. Em 2003, ainda na graduação, começou a dar aulas. No começo do ano recebeu uma turma, mas se destacou e ao término dava aula a todas as turmas do colégio. 

“Em 2006 eu fiz o concurso para a Secretaria de Educação e em 2010 eu fui convocado. Eu pensei muito, não sabia se deveria sair de Belém, mas quando vi que as inscrições para o mestrado da Universidade de Brasília (UnB) estavam abertas, decidi encarar como um sinal e fui morar em Planaltina-DF”. 

Até então Tiago nunca ficou mais de dois anos em um colégio “eu sempre precisava de novidade”, lembra. Quando o caminho entre Planaltina e o centro de Brasília, onde o professor trabalhava e tinha compromissos frequentes, começou a ficar cansativo, ele pediu para se transferir. 

“Na Secretaria de Educação os professores podem fazer remanejamento e atuar em qualquer escola do DF, de qualquer natureza. Eu queria sair de Planaltina e ficar mais perto do Plano Piloto. Então, fiz o remanejamento e a única vaga para ministrar química, era a UIPSS”, lembra o professor ao dizer que o acaso lhe enviou para aquela unidade. 

Hoje, o professor lembra com carinho da época na unidade. “Se eu não tivesse passado por lá, hoje eu estaria mais desestimulado com a docência”, conclui.

A professora Ana Lúcia Amado, que conheceu Tiago em 2012 no Centro Educacional Dona América Guimarães, no Arapoangas, de Planaltina-DF, reforça que o professor sempre buscou maneiras inovadoras de ensinar. 

“Buscar formas de tornar o processo de ensino e aprendizagem mais atrativo para o aluno, ter empatia e proximidade com a comunidade escolar como um todo sempre foi um diferencial no trabalho do Professor Tiago”, destaca. 

O primeiro contato 

Quando o professor de química chegou na unidade de internação lembra que se assustou. “Lá eles são carentes de tudo, não só de educação, mas de afeto, de atençao”, relembra. “Mas eu enxerguei uma oportunidade. Na época pensei aqui que meu ser pedagógico vai viajar”. 

E foi o que aconteceu. No UIPSS Tiago dava aula de química de diversas maneiras e precisou se reinventar. Dentro de um centro de reintegração, os alunos não podem ficar com lápis ou caderno. Desta forma, o professor precisava levar tudo, desde o papel até os itens para experimentos químicos. 

“Eu usava a realidade dos alunos para mostrar que a química estava no dia a dia. Eu lembro que até os agentes entravam na sala para ver os experimentos químicos, como no dia que eu provei a existência do oxigênio com uma vela e um copo. Os meninos adoravam”, lembra. 

Em outra oportunidade, Tiago forjou uma reação química com ácido clorídrico e papel alumínio para gerar gás hidrogênio. Se não fosse o respeito que ele tinha, não poderia entrar com o composto químico em sala de aula. Eles viam que era ácido, mas não chegavam nem perto”. 

“Eu fui me reinventando, eu fui ousando”, diz Tiago. Mas para isso o professor tomava cuidado. Nem o lixo ele podia deixar dentro da sala de aula ao término da explicação. 

Conhecendo os alunos, Tiago passou a dar aulas de química que versassem o dia a dia dos meninos em situação de vulnerabilidade. “Eu falava sobre Infecções Sexualmente Transmissíveis (IST), uso de drogas, sexualidade e bem abertamente, mas não para agradá-los. Eu queria que eles entendessem mais a própria realidade”. 

Os outros professores começaram a perceber que os alunos se identificavam mais com o professor de química. Para os discentes era inconsciente, mas Tiago sabia que sua cor, negra, influenciava no respeito que os alunos tinham por ele. 

Identificação 

“Quando eu cheguei na UIPSS os meninos me olhavam diferente. Eu era um dos poucos professores negros. Em mim, eles se reconheciam”, reflete o professor. “Parecia que eu era um ‘carinha da quebrada’ deles que deu certo na vida”. 

Outro ponto que aproximava Tiago de seus estudantes era sua linguagem. “Eu nunca fui de usar palavras rebuscadas. A língua é uma forma de facilitar o aprendizado, o conhecimento”, afirma. 

Nem tudo eram flores. No primeiro ano na UIPSS Tiago pensou em pedir para sair do colégio que funcionava dentro da unidade, não por conta dos alunos, mas sim de alguns desafios que enfrentava.

“Era muito difícil pra mim. Eu tinha aulas na segunda de manhã, por exemplo, e à noite os adolescentes brigavam, então na terça, como medida de segurança, eram trocados de grupo, e eu tinha novamente na turma um aluno que assistiu minha aula no dia anterior. Eu nunca podia planejar uma aula só para todas as turmas”, explica. 

Por conta disso, o professor precisou ser mais versátil do que nunca. “Eu levava aulas de química, física, biologia, matemática”, mas não parou por ai. Tiago começou a levar jogos e, com eles, ensinar. “Eu comprei Banco Imobiliário e War. E eu lembro que a maioria não gostava do War por não entender e eu comecei a trabalhar a ideia de estratégia com eles. Eu aproveitava a diversão para ensinar”. 

Hoje, o professor lembra com carinho da época na unidade. “Se eu não tivesse passado por lá, eu estaria mais desestimulado com a docência”, conclui. 

Onde tudo começou

Antes de chegar na capital federal e ser professor na UIPSS, Tiago começou a carreira como docente no Pará. “Com certeza minha experiência em Belém me ajudou como professor aqui em Brasília”. 

O docente se formou em em Licenciatura pela Universidade Federal do Pará (UFPA) em 2007. Quando formado, já estava em sala de aula há cinco anos. “Ainda na graduação, atuei no Ensino Fundamental com turmas da 5ª à 8ª série (hoje do 6º ao 9º ano) como professor substituto e depois de uma pressão dos pais, alunos e colegas professores fui chamado para ser o professor de Ciências da escola”, lembra Tiago com carinho. 

“Eu falo dessa experiência, pois foi quando percebi que tenho uma forma diferente (da maioria dos professores) de trabalhar. Quando o assunto a ser abordado era o reino vegetal, eu levava as turmas pro jardim da escola e ensinava na prática, quando era assunto mais científico (radioatividade, por exemplo) eu recorria a desenhos animados para que os estudantes pudessem imaginar as consequências e ações da radioatividade”.

Antes de se mudar para o Centro-Oeste, Tiago deu aulas na ilha de Cotijuba, uma das 42 do arquipélago de Belém. O caminho até a aula durava três horas e o professor nem almoçava pensando em seus alunos. Para chegar na ilha eram necessárias duas vãs e um barco “Ou eu chegava na hora da aula ou eu almoçava”, explica.

Em Cotijuba, que é um paraíso turístico da cidade, Tiago dava aula para alunos da região que moravam na praia de Vai Quem Quer. “O nome é explicativo”, conta gargalhando. A praia é a mais distante do centro da ilha. 

Na ilha Tiago orientou três projetos de iniciação científica dos próprios alunos, que queriam melhorar a vida em comunidade na ilha. Um deles pesquisava o pó do café como agente biocida “Meu aluno queria saber o que usar para matar as formigas da horta da família dele”, lembra. 

Em outro trabalho, um aluno queria conhecer os tipos de lixo e as quantidades de resíduos gerados em cada época do ano. “Em feriado e nas férias, o estudante percebeu que a quantidade e diversidade do lixo aumentavam. E ele queria entender o porque”. 

O terceiro projeto queria criar um livro de medicina caseira para anotar os ensinamentos dos mais velhos “O aluno foi perguntando aos mais idosos suas receitas caseiras para dor de barriga, por exemplo”. De acordo com Tiago, os trabalhos eram cansativos, mas geraram muito valor. 

Mais um desafio 

Dando aula no ensino regular e adaptado a cidade, Tiago precisou enfrentar seu último grande desafio no ano passado: a pandemia de coronavírus. “Eu nunca me dei bem com tecnologia e confesso que quando as aulas foram para o virtual eu pensei em pedir um afastamento”, conta. 

Mas o professor refletiu e desistiu da ideia “Eu sempre enfrentei desafio, esse seria só mais um”. Tiago não só se adaptou, como virou supervisor pedagógico do colégio neste ano, visto seu trabalho de destaque no Centro de Ensino Médio 01 de São Sebastião. 

Os alunos de Tiago, em avaliação feita no fim do ano, elogiaram o professor. “Achei muito legal, pude perceber como ela se aplica no cotidiano, antes não me interessava pois pensava que só quem iria usar química na vida seria pessoas que iriam trabalhar na área, mas agora sei que uso a química no cotidiano”, disse um aluno. 

Outro estudante destacou como o docente usa a química em suas aulas “A química em si é uma matéria muito complicada, mas o jeitinho que o senhor nos apresenta essa matéria nos dá vontade de querer continuar. Obrigada professor, eu admiro muito o senhor!”, disse.

Como supervisor pedagógico Tiago segue com sua filosofia de trabalho. “Da mesma forma que busco humanizar minhas aulas, tenho feito com os professores. Hoje, os relatos positivos são dos colegas e vêm mesmo sem eu pedir uma avaliação do meu trabalho”, se alegra.

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