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Brasília

Por necessidade, idosos mergulham no trabalho informal no DF

Em 2022, no Brasil, um terço da população acima dos 60 anos já aposentada segue trabalhando, uma porcentagem de 33,9%

Redação Jornal de Brasília

28/02/2023 15h40

Foto: Bernardo Guerra/Agência de Notícias CEUB

Bernardo Guerra
(Jornal de Brasília/Agência de Brasília)

As ruas de Brasília começam a se movimentar cedo. Quiosques e ambulantes madrugam para estarem abertos ou em circulação juntamente com os primeiros raios de sol do dia. Em centros comerciais, rodoviárias ou pelas ruas da capital, as pessoas tentam ganhar suas vidas. Planos e sonhos é o que não faltam, afinal, existem ainda muitas décadas para serem vividas pela maioria desses comerciantes. Para os idosos Maria de Lourdes, 67, Raimundo de Jesus, 64, e Nélio Marques, 59, a época de pensar no futuro já se foi.

Em 2022, no Brasil, um terço da população acima dos 60 anos já aposentada segue trabalhando, uma porcentagem de 33,9%. Ao delimitarmos ainda mais a idade, resumindo a aposentados que possuem entre 60 e 70 anos, o percentual dos que seguem no mercado de trabalho sobe para 42,3%. Esses dados são provenientes de um estudo realizado pelo Serviço de Proteção ao Crédito (SPC Brasil) e pela Confederação Nacional de Dirigentes Lojistas (CNDL). Além disso, as mesmas estatísticas apontam que 27% destes trabalham de forma autônoma ou informal.

Andar por qualquer cidade, não apenas Brasília, é sinônimo de se deparar com ambulantes e comerciantes vagando pelas ruas. Cada vez mais, mais idosos estão presentes nessa categoria. Esse movimento da terceira idade trabalhar informalmente, sem direitos trabalhistas, garantias de segurança ou renda fixa, justamente na idade em que estão mais frágeis e suscetíveis às maldades do destino, ocorre por obrigação. Ver-los pela rua se torna rotineiro. Enxergá-los, mais raro.

As demandas desse grupo social, assim como as dos demais indivíduos, são amplas e variáveis, indo das necessidades básicas de sobrevivência a problemas ainda mais complexos, como a solidão e a falta de lazer voltada para tais cidadãos.

Rodoviária

Segundo o estudo do SPC Brasil e da CNDL, para 46,9% das pessoas aposentadas o complemento de renda é a principal justificativa dos idosos para seguir trabalhando. O segundo motivo mais declarado foi o de precisar manter a mente ocupada, por 23,2%.

Diariamente, cerca de 700 mil pessoas passam pela Rodoviária do Plano Piloto. Em meio à muvuca e a correria do dia a dia, boa parte dos feirantes são ignorados por aqueles que transitam pelo local, como se fizessem parte do ambiente em si, sem serem pessoas de fato.

Uma comerciante que chama a atenção em meio a multidão é uma figura mirrada e com postura arqueada, fruto de tanto ficar sentada em cima de uma grande caixa de papelão, sem apoio para as costas. Essa caixa é por onde ela traz e leva suas mercadorias, o papelão mal se vê direito, por estar reforçado completamente por sacos, pedaços de jeans e cordas, com um puxador de mercado e rodinhas para auxiliar no transporte também.

Maria de Lourdes tem 67 anos e tenta ir todos os dias para a rodoviária para vender seus produtos: roupas íntimas e meias, todas espalhadas por cima de um grande pano verde. A variedade de modelos e tamanhos fazem com que todos que passem por ali, deem uma olhada, mesmo que de relance.

Maria chegou em Brasília em 1979. Nascida em São Miguel (RN), mudou-se para a capital com sua família em busca de novas oportunidades. “Aqui era muito bom de emprego no início, o Setor Comercial Sul era o polo de empregos da época, então eu trabalhei muito por lá, trabalhei no Setor de Indústrias, em lojas de construção e até em fábrica, tudo emprego fichado bonitinho”, explica.

Em novembro de 2022, ela mora com sua irmã mais velha, de 87 anos, na Ceilândia, dividindo o lote com casas de outros membros da família. Companhia é o que não falta, e Maria também diz não ter o que reclamar do auxílio recebido pelo INSS, mas, ainda assim, escolhe vir diariamente para a rodoviária para vender roupas íntimas.

Questionada pelo Esquina, ela revela que a questão é não gostar de ficar em casa. “Chego aqui (na rodoviária) por volta de 13h, e fico até de noitinha. Não aguento ficar em casa, me sinto mal, parece que vai surgindo novas dores pelo corpo, com essa idade é difícil, então venho para cá para me distrair”. Ficar na rodoviária, em meio a toda aquela movimentação, faz com que Maria esqueça o peso da própria idade, além de lhe dar a chance de interagir socialmente mais vezes. “Enquanto eu conseguir levantar da cama e vir trabalhar, eu venho trabalhar”, disse.

W3 Norte

23,4% dos idosos aposentados pelo INSS acreditam que sua renda atual não é o suficiente para atender todas as suas necessidades, e 28,3% declararam ter sentimentos negativos sobre a necessidade de seguir trabalhando após ter se aposentado, aponta a pesquisa realizada pelo SPC Brasil, juntamente com a CNDL.

Na altura da 511, às margens da W3 Norte, três quiosques compartilham o espaço de calçada atrás do ponto de ônibus. Com todo o seu exterior pintado de azul, o menor dentre os três também é o mais antigo deles, o Trailer do Raimundo.

Nascido em Feira de Santana (BA), Raimundo de Jesus Santos trabalhou formalmente em sua cidade natal em uma fábrica de reatores. Sua vinda a Brasília se deu graças ao Plano Collor. “Eu tive que vir, e, como eu já tinha parentes aqui, facilitou mais (a decisão)”, relembrou.

O vendedor conta que pouco tempo após chegar em Brasília, acabou sendo um dos afetados pelo confisco de poupanças do governo Collor. “A ministra (da Economia) da época (Zélia Cardoso de Mello) enganou a todos. Ela falava que o dinheiro deveria ir na poupança, que o próprio dinheiro dela também ia para as poupanças, daí quando o Collor ganhou, ela pegou nossa grana e ficou segurando. Aí esse havia sido o meu motivo de vir para Brasília e acabou que não foi isso que falaram, né? Mas não foi surpresa não”, desabafou, conformado pelo ocorrido.

Como já havia feito toda sua mudança para a capital e estava morando com a irmã, Raimundo decidiu começar a buscar sua independência na cidade. Sua primeira oportunidade de trabalho veio através da própria parente, que havia construído um trailer para comercializar bebidas e comidas.

34 anos depois de receber o convite dela para ajudar nas vendas, o trailer segue sendo o local de trabalho de Raimundo. Em 2022, apenas o comerciante trabalha no local, aos 64 anos de idade. Sem auxílio de nenhum familiar ou conhecidos, ele mantém tudo sozinho e diz conseguir pagar suas contas, mesmo que fique tudo apertado no final do mês.

De 6h às 19h, Raimundo fica no trailer, o qual não possui nem energia elétrica. “É meio precário, já foi melhor. Depois de um certo tempo, tudo ficou muito parado”. Vendendo de segunda à sábado, os períodos da manhã e do final da tarde geralmente são os mais marcantes, mas, ainda assim, o comerciante não consegue tirar muito disso. “Faz tempo que eu não vejo um dia bom por aqui, acho que todos os comerciantes de rua estão sofrendo. (…) Eu só continuo trabalhando por necessidade mesmo, só com a aposentadoria não dá para me manter, infelizmente”, lamenta.

Raimundo tinha o sonho de voltar a morar em sua cidade natal. Porém, com o falecimento de sua mãe, o sonho perdeu o propósito para ele e virou apenas uma indiferença, caso realmente aconteça ou não. “Não sei nem se vale a pena ter planos depois de certa idade”

Ponto do ônibus

O Brasil possui, no ano de 2022, um pouco mais de 19 milhões de aposentados pelo INSS, segundo a Previdência Social. Em sua maioria, essa aposentadoria ocorre próximo aos 58 anos de idade, beirando entrar na terceira idade. A cada três aposentados, dois recebem apenas um salário mínimo como auxílio.

4h35. Madrugada no Novo Gama, município de Goiás. Nélio já levantou da cama, já tomou seu café da manhã, já vestiu sua calça preta com finas listras brancas, seu tênis surrado pelo tempo e sua camisa quadriculada de botões. Em sua moto, faz caminho para Taguatinga, no Distrito Federal. Por volta das 6h, chega ao seu destino, uma parada de ônibus próximo ao Alameda Shopping, ao lado do centro comercial da região administrativa. Estaciona na vaga mais próxima do ponto e começa a montar sua barraca de pipoca, onde ficará pelas próximas 14 horas do dia.

Coincidentemente, há 14 anos essa é a rotina de Nélio Marques Monteiro. Das 6h às 20h. De segunda à sexta. Vende pipoca ao lado da parada de ônibus do Alameda Shopping, em Taguatinga.

Dispensado de seu último emprego aos 45 anos de idade, a dificuldade de achar um novo emprego formal fez com que o pipoqueiro recorresse à informalidade para seguir pagando suas contas. Seu antigo cargo era de projecionista no então cinema do Gama Shopping. “Trabalhei 10 anos lá, ajudei a montar o cinema e acabei sendo um dos ajudou a desmontar também”, disse, em alusão ao fechamento do estabelecimento no shopping.

A transição de projecionista para pipoqueiro foi mais difícil do que imaginava. Sem experiência prévia, o comerciante relembra suas dificuldades para aprender tudo sozinho. “Eu não sabia fazer pipoca, especialmente a pipoca doce, pensa em um negócio complicado, ainda bem que hoje todos falam que é a melhor”. Para Nélio, o aprendizado foi na base da tentativa e erro. “Quando saía ruim, eu tentava melhorar. O pessoal comia e reclamava, aí eu ia melhorando, até que começou a sair certinho”, explicou.

A escolha de vender em Taguatinga também se deu por tentativa e erro. Primeiro tentou no Novo Gama, mas não conseguiu vender bem, depois tentou no Gama, onde viu uma melhora, mas longe do ideal para se sustentar. Após isso, foi parar em Taguatinga, onde segue indo diariamente.

Em 2022, aos 59 anos, Nélio se aproxima da terceira idade sem muita perspectiva de futuro. “Pretendo continuar aqui, estou conseguindo pagar as minhas contas, não devo nada para ninguém, então está tudo certo”, se contenta.

Neste ano, todos os seus dias têm sido bons em relação a vendas, segundo o mesmo. “Digamos que um dia ruim é o equivalente (a receber igual) a diária de um ajudante de pedreiro, e um dia bom seja como (receber igual) a diária de um pedreiro, eu não tive um dia ruim ainda em 2022”, conta.

O sucesso das vendas rendeu até uma melhora de vida, com sua mudança do Novo Gama para Taguatinga, planejada para ocorrer ainda em 2022. “Vou poder começar a acordar às 6h”, disse com entusiasmo e um sorriso de felicidade estampado no rosto.

Previdência

No último levantamento do IBGE, em 2021, pessoas com idade acima ou igual a 60 anos correspondem a 14,7% da população brasileira. Ou seja, 33,8 milhões de idosos, um aumento de 3,4% em comparação a 2021. Em comparação a porcentagem de pessoas abaixo dos 30 anos que caiu em 6% no mesmo período de tempo, ou seja, o Brasil caminha a passos largos para se tornar um país idoso.

Questionada sobre o que tem sido feito para evitar que pessoas na terceira idade sejam obrigadas a trabalhar na informalidade, a Secretaria Nacional de Promoção e Defesa dos Direitos da Pessoa Idosa (SNDPI), afirmou que o Brasil ainda caminha para construir uma política de Estado visando o enfrentamento desse desafio e de muitos outros que opõem a população idosa do país.

“Conseguimos avançar na questão Previdenciária com aposentadorias e BPCs, mas ainda deixamos a desejar em políticas de inclusão e proteção da pessoa idosa”, respondeu o Secretário Nacional, Antonio Costa.

Embora Adoniran Barbosa cante que “saber envelhecer é uma arte”, fazê-lo em um país que sofre com a ausência de políticas públicas voltadas para o cidadão de terceira idade se mostra também um ato de resistência. Em uma sociedade onde apenas aqueles que são vistos como produtivos têm o seu valor, os direitos e cuidados voltados aos idosos se mostram em segundo plano, obrigando aquele que já contribuiu durante toda uma vida com o país a improvisar para sobreviver (e ser visto).

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