Menu
Brasília

Por trás das janelas: história de quem trabalha nos semáforos de Brasília

Ela começou a vender as mercadorias no semáforo com a cara e coragem. A expressão no rosto de Fátima era de timidez

Redação Jornal de Brasília

28/02/2023 15h36

Foto: Giulia Rodrigues/Agência de Notícias CEUB

Giulia Rodrigues
(Jornal de Brasília/Agência de Notícias CEUB)

O semáforo abria e fechava. Foram 10 minutos em que os carros passavam e os motoristas ignoravam a presença de Fátima Santiago. É por trás das pipocas doces e sacos de lixo que “Dona” Fátima, de 63 anos, consegue o sustento. É uma mulher pequena, com 1,54 de altura, mas com força de vontade que a faz acordar cedo e dormir tarde.

“As pipocas e os sacos de lixo – vendidos separadamente – são a minha fonte de renda, não tenho nenhum emprego. Ninguém quer idoso para trabalhar e eu não me acho idosa não, mas o povo acha, aí eu não tenho o que fazer”, suspirou.

Ela começou a vender as mercadorias no semáforo com a cara e coragem. A expressão no rosto de Fátima era de timidez. “Isso aqui não é qualquer pessoa que enfrenta. Eu morro de vergonha. Antes disso, eu trabalhei em três lojas de gesso, por mais de 20 anos”, lamentou.

“Eu vou por falta de opção, isso eu enfrento, eu tenho vergonha disso aqui, mas eu tenho mais vergonha de não pagar o que eu devo e tenho mais vergonha ainda de pedir”, disse. A falta de opção é traduzida em números pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Na capital do país, 20,1% das pessoas identificam-se como ocupadas “por conta própria”. É o menor percentual entre todas as unidades federativas do País em um ano em que o Distrito Federal teve uma taxa de desemprego na altura dos 11,2%. Na prática, ou entra em um percentual ou em outro. Enquanto a rua está “aberta” para vender, eis a saída para a sobrevivência.

O trabalho nas ruas de Fátima começou em 2013 após ser demitida do emprego na loja de gesso. A vida no comércio começou com balinhas e caqui. Depois panfletou na Asa Norte e na Ceilândia até parar na Samdu Norte, em Taguatinga, seu atual local de trabalho.

Além disso, Fátima contou que, na infância, não foi diferente e começou a trabalhar desde cedo junto com a mãe onde eram feitos serviços braçais e faxinas. “Toda a vida trabalhei muito pesado esfregando o chão dos outros, e aí acaba que essas coisas atrapalham em tudo, e é um desgaste muito grande”, comentou Fátima.

De segunda a sexta, a rotina é corrida. Os horários de se levantar variam dependendo do cansaço, mas há dias em que às 5h da manhã ela já está de ‘pé’. Em certas ocasiões, não consegue vender nenhum produto. “Tem dia que está bem fraquinho – o movimento -, já teve dia que eu só consegui vender uma unidade de saco de lixo”,afirmou mostrando o saco de lixo.

Todos os dias, Fátima deixa a casa e arrasta suas pipocas doces, sacos de lixo e panos de chão em um carrinho pequeno. Os produtos, geralmente, são comprados em uma distribuidora na Ceilândia, pois são os mais baratos entre os demais.

Fátima nem sempre trabalhou na informalidade. O tempo em que contribuiu nas três lojas de gesso – cerca de 20 anos – só conseguiu ser registrada em carteira de trabalho apenas em uma delas. Apesar de ter passado a vida toda trabalhando, só possui oito anos de contribuição. Depois de ter começado a trabalhar nos semáforos, nunca mais conseguiu arrumar trabalho formal e com carteira assinada.

A janela da capital

A chegada de Fátima à capital foi em 1974, junto com a família de um militar que se mudava para morar em Brasília. Neste período, trabalhou para eles durante um ano como doméstica. A mudança para Brasília era para fugir da fome doída de Teresina (PI). Para poder se sustentar, foi preciso abandonar os estudos.

Durante a conversa de cerca de uma hora, três pessoas compraram pipoca, salgadinho e pano de chão. A última pessoa foi um motorista que abriu a janela do carro e buzinou duas vezes com a janela aberta. Ela para a conversa. Corre até o saco onde estão as esperanças de vendas.

Tem pipoca doce aí, moça?
Tem! – saiu correndo em direção ao carro com três pipocas na mão.
Os produtos são guardados em três sacolas grandes – uma sacola para cada produto – e ficam encostados à mostra na parede de uma clínica odontológica.

A fé em Deus é o que a mantém de cabeça erguida e que ajuda ela a passar por essa turbulência e desafios. Ela afirma que não vai à igreja há mais de 40 anos. Apesar de nunca ter tempo para ir, isso não atrapalha e nem diminui a sua crença em Deus.

Por trás das placas e barracas

A diarista Elenilsa da Silva, de 47 anos, caminha todos os dias pelos meios dos carros segurando uma placa oferecendo o serviço doméstico e ajuda para o neto através da mensagem escrita. Ela pede por ajuda e emprego. Elenilsa define-se como uma “mulher guerreira e batalhadora”, mas que nunca serão capazes de entender tudo o que ela passou.

Enquanto Isa – como é chamada pelos amigos mais próximos – circula pelos corredores entre os carros antes do semáforo da quadra 706 da Asa Norte, o marido, Domingos Gomes, de 58 anos, fica na barraca de madeira vendendo morangos e cajus para ajudar a complementar a renda da família.

“Eu fico aqui ajudando o meu marido a vender as frutas. Fico segurando a placa pedindo ajuda, eu consigo arrumar algumas diárias através da minha placa”, diz enquanto mostra a placa.

Percurso

A rotina começa antes mesmo do sol nascer. O casal sai de casa na Ceilândia às 3h30 da manhã e vai direto para a Ceasa (Centrais de Abastecimento do Distrito Federal) comprar frutas frescas para vender no sinal. “Se a gente chegar na Ceasa às 5h da manhã, você não acha nada que preste”, comentou Elenilsa.

O sol forte castiga quem está embaixo e é preciso encarar o calor. Para se proteger, apenas as árvores são aliadas. O casal permanece trabalhando nos semáforos diariamente até às 18h e retornam para casa somente às 21h. Mas o segundo turno da jornada continua em casa. “Quando eu chego, eu vou preparar a janta, coloco roupa para lavar e fico cuidando do meu neto, durmo umas 23h e tô de pé às 3h30”, afirmou.

Emocionada, Elenilsa falou com grande carinho e risos sobre o neto, Ravi Gutierrez. A prioridade é cuidar do menino. “Se faltar alguma coisa na minha casa, eu sei me virar. Mas meu neto não. Não tem condições de eu falar para uma criança de 1 ano e 3 meses que não tem leite, não tem iogurte, não tem banana. É difícil”, disse chorando e com a voz embargada.

Durante o contato, Elenilsa é surpreendida por um rapaz que se aproximou para lhe entregar algumas moedas. Ela prefere ganhar doações ao invés de moedas, mas nunca nega a ajuda de ninguém. “Meu objetivo não é ganhar dinheiro e sim ganhar ajuda. Me ajuda muito mais a pessoa vir me perguntar o que eu preciso, do que ganhar R$ 1, então prefiro doações”, afirma.

Elenilsa relembrou dos momentos em que foi assediada nos semáforos. Motoristas ligam para o número da placa e perguntam se ela faz programa, outros abaixam suas janelas e oferecem cestas básicas em troca de programa. “Eu tenho a minha dignidade, é realmente humilhante o que a gente faz, mas eu não tô roubando de ninguém, eu só estou pedindo ajuda”, indigna-se.

Ao conversar com Domingos, marido de Elenilsa, o rapaz contou que vende frutas há 20 anos em sua barraca, debaixo de uma árvore. “Tem dia que sobra quase tudo. Aí no outro dia as frutas que sobram do dia anterior eu aproveito a metade, mas o morango não aguenta, o caju não aguenta – por conta do calor – são frágeis”, lamentou.

Em junho do ano passado, Domingos sofreu um acidente quando foi atingido por um motoqueiro enquanto transitava entre os carros. O resultado foi um braço quebrado – o osso ficou pra fora – e as vendas tiveram que parar. Durante vários meses, Elenilsa ficou cuidando das vendas sozinha.

“Agora que está começando a voltar os movimentos – do braço – comecei a trabalhar depois de um tempo, mas a placa que colocaram no meu braço saiu do lugar. Depois disso voltei pro hospital e passei mais dois meses lá”, afirmou Domingos.

Foi em um final de semana, que Domingos resolveu fazer uma placa pedindo por socorro porque sabia que iria perder o braço por causa da infecção que pegou por conta da espera pela cirurgia.

“Ele só conseguiu fazer a cirurgia de novo por causa da placa. Passavam muitas pessoas e tiravam foto, aí teve um rapaz que passou e falou que o pai dele era médico do hospital de base, aí ele – o pai do rapaz – ligou e marcou a cirurgia dele”, afirmou Elenilsa.

As sequelas permanecem apesar da cirurgia, até para pegar um copo de água é preciso um esforço a mais. “Eu coloco as frutas aqui – apoiado no braço direito – e logo eu tenho que trocar porque começa a doer”, lamentou Domingos. Até o sinal se abrir.

    Você também pode gostar

    Assine nossa newsletter e
    mantenha-se bem informado