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Brasília

“Fingem que não nos veem”, dizem panfleteiros no DF

Com a companhia de um celular e um fone de ouvido, que só funciona de um lado, 20 manhãs do mês de Raquel se passaram ali

Redação Jornal de Brasília

28/02/2023 15h26

Foto: Eduardo Hahon/Agência de Notícias CEUB

Eduardo Hahon
(Jornal de Brasília/Agência de Notícias CEUB)

Sair de casa antes das 6h da manhã, de ônibus, para assumir seu “posto” na pista da Ponte Juscelino Kubitschek, a JK.

Lá, sentada sobre um pedaço de papelão e apoiada na grade de um dos locais mais elitistas de Brasília, o Clube de Golfe, Ana Raquel, de 33 anos, cuidava de uma faixa de campanha de um candidato a deputado federal pelo Distrito Federal. Com a companhia de um celular e um fone de ouvido, que só funciona de um lado, 20 manhãs do mês de setembro de Raquel se passaram ali.

Esta rotina, é claro, mexeu no funcionamento da casa de maranhense: o filho José, de 16 anos, ficou encarregado por fazer com que os irmãos Miguel, de 12, e Marcos, de 9, estudassem antes da aula. Ana lamenta não ter feito parte deste momento por tanto tempo, e afirma se tratar da “hora mais importante do dia”. O hábito começou durante a pandemia, quando ela temia que Marcos, o caçula, fosse perder parte importante de sua alfabetização. “Eu tive que assumir. Estudamos todos os dias para ele não perder o costume de leitura”, comentou.

À tarde, com os três já na escola, Ana Raquel pegava a van – paga pelo candidato – para algum ponto de fluxo, onde panfletava e bandeirava por mais quatro horas. “Eles fingem que não nos vêem”. Foi assim que Ana descreveu o tratamento dado aos panfleteiros no Plano Piloto, área nobre da Capital. O trabalho era, intenso, mas não dava para abrir mão dos R$ 800, principalmente com a revenda de cosméticos “não indo muito bem”. “Tem sido muito difícil, não podia perder a oportunidade”, disse Ana preocupada. Ela já atua revendendo produtos há mais de seis anos, quando perdeu um emprego como CLT – o único de sua vida até aqui -.

Meu objetivo é este [voltar a trabalhar com carteira assinada].
E o seu sonho?
Estudar direito. […] A lei é linda, sabe? E também é o sonho do mais velho [José]. Então nós vamos estudar para passar numa federal, ou trabalhar para pagar uma particular. Quem sabe a gente não faz junto? Mãe e filho juntos na faculdade. – disse Raquel, os olhos brilhando sonhadores.
O sonho do diploma em direito, porém, ainda vai ter que esperar. Entre eventuais “bicos” – como a panfletagem nas eleições – e a revenda de perfumes. O filho do meio, Miguel, é diagnosticado com TDAH (Transtorno do Déficit de Atenção com Hiperatividade), o que requer uma atenção especial. As idas aos médicos são frequentes, e a preocupação com o desenvolvimento de Miguel faz com que a mãe não tenha tempo para se dedicar ao ensino superior.

Ana Raquel não tinha experiência com panfletagem eleitoral, mas a oportunidade lhe pareceu ideal, já que o único emprego com carteira assinada de seis anos atrás consistia em distribuir jornais impressos em semáforos da Asa Norte. Para Raquel, os dois exigem as mesmas características: “Você precisa sorrir, conversar com a pessoa. Precisa entender do assunto para convencer”, observou. Mas, de acordo com a panfleteira, as coisas não deram certo de cara:

“Eu comecei fazendo campanha para uma candidata a distrital. Ela era muito exigente, pressionava a gente. Ela me pediu para reunir uma equipe de pessoas jovens, e eu trouxe uma pessoa que trouxe mais pessoas. Depois de quatro dias trabalhando, ela me mandou embora porque eu era “muito velha”, “acima do peso”.
E ela te pagou?
Demorou muito. Ela disse para a minha conhecida que não ia pagar, que era mixaria. Eu não fui atrás porque ela sempre falava que era advogada, fiquei com medo de um processo. Depois de um tempo pediram meu Pix, e eles transferiram o dinheiro.
Quanto?
Cento e vinte reais.
Por quatro dias?
Isso, por quatro dias. Eu não fiz a conta para saber se estava certo, só aceitei.
Foi depois disso que Ana Raquel foi chamada para fazer parte de outra campanha, desta vez de um candidato a deputado federal. “De cara”, ela disse. “Deu para ver que era diferente, que era alguém melhor. Trabalhei com vontade porque acreditava no candidato”. Raquel lamenta a falta de respeito e reconhecimento para com os panfleteiros.”Tanto das pessoas quanto de quem contrata”.

É isso que pensa Jackson dos Santos, 26 anos, que trabalhou como panfleteiro durante a campanha eleitoral de 2022. Questionado sobre se acha o pagamento justo, Jackson não pestanejou: “Não”. Sempre muito direto, o morador de Planaltina (GO) criticou a “estrutura” – se é que pode se chamar de estrutura – do trabalho de panfleteiro. “Alimentação a gente não tem. Nem garrafa d’água eles dão, na verdade”, disse. Jackson acrescentou que não votaria no candidato para quem fazia campanha, e que já havia se sentido ameaçado ao exercer o trabalho.

Arriscado, mal-remunerado, pouquíssimo valorizado: todos estes adjetivos podem descrever a panfletagem, principalmente a realizada em campanhas eleitorais. Com um agravante: estes trabalhadores, muitas vezes, defendem ideias e pessoas em quem nem eles acreditam. Num cenário como este, então, o que faz pessoas como Jackson e Ana Raquel aceitarem convites para panfletar? Foi esta pergunta que respondeu Luiz Eduardo Moreira, 40 anos, que desde 2021 passa as tardes distribuindo panfletos de mercados varejistas pelas ruas de Taguatinga. Luiz, que se diz autônomo, afirma que aceitou o trabalho porque “é melhor um pássaro na mão do que dois voando”.

“Eu trabalho pela manhã. À tarde, eu costumava ficar em casa, só gastando dinheiro. Assim eu recebo um dinheirinho que faz a diferença, mas é cansativo. Fico na rua sem parar, de 5h às 20h”, diz Luiz Eduardo, cansado.

Direitos

A advogada Fernanda Rodrigues, especialista em direito trabalhista, chama atenção para os riscos decorrentes da falta de “apoio ao contratado” em relações trabalhistas informais como as destes panfleteiros. “São trabalhos sem garantia e segurança algumas”, afirmou Fernanda.

Pelo fato de ser na rua, a panfletagem tem riscos. E, por não ser um trabalho bem regulamentado, os empregadores não têm muitas obrigações com os contratados”. Ela entende que a modalidade de panfletagem mais regulamentada é a eleitoral, já que é supervisionada pelo Ministério Público Eleitoral.

A equipe do Esquina mostrou para a advogada os depoimentos dos panfleteiros entrevistados, e ela destacou que, mesmo sem muita regulamentação, aqueles que trabalham no ofício têm direito a certas condições de trabalho, como “água, comida e uma hora de descanso”.

Ela explica que, geralmente, estes profissionais, durante suas jornadas de trabalho, não têm acesso nem a um banheiro.

A situação jurídica dos panfleteiros, porém, gera divergências entre os especialistas da área. Enquanto, de acordo com Fernanda, há um “consenso predominante” de que não há vínculo empregatício entre panfleteiros e contratantes, já que o trabalho é de “cunho ideológico”. “No entanto, isso não faz com que os trabalhadores não sejam protegidos por leis trabalhistas básicas”.

De acordo com o Tribunal Superior do Trabalho, o TST, panfleteiros e homens-placa. Mesmo não havendo vínculo empregatício, eles devem ter sua integridade física assegurada, bem como direito à remuneração. Mesmo estando no meio da rua, enquanto o sinal não abre. “Até mesmo indenizações por danos morais podem ser pleiteadas quando necessário”, afirma o órgão em seu site oficial.

De acordo com um marqueteiro de campanha de um partido político brasileiro, ouvido pela reportagem, algumas pessoas percebem uma falta de eficiência desta forma de publicidade, “que mais irrita do que convence”. Esta característica, se somada ao atual monopólio das redes sociais para fins publicitários e à crescente preocupação com questões ecológicas e ambientais, pode resultar no fim dos famosos “santinhos” pelo país. “Já não vale mais a pena pagar uma equipe de pessoas para saírem pelas ruas distribuindo materiais de campanha”, comentou o publicitário.

Para Ana Raquel, porém, “valer a pena” tem um significado diferente. Sentindo-se descartável como os panfletos que distribuía, a mãe de três filhos precisará encontrar, longe dos panfletos, uma forma de melhorar a vida da família. Os panfletos foram apenas parte do caminho, e o sonho de Raquel não cabe em um papel: o curso de direito. Panfletando ou não, a maranhense vai trabalhar o quanto for necessário para alcançá-lo. Diferentemente dos papéis, sonhos não acabam no fundo da lixeira.

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