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Saúde

Maternidade compulsória: a realidade das mães arrependidas

À margem da maioria dos debates, as mães arrependidas, em sua maioria vítimas da maternidade compulsória, buscam entre si e em si respostas escondidas sobre o que é maternar

Redação Jornal de Brasília

05/04/2022 16h15

Foto: Reprodução / Canva

Evellyn Luchetta e Geovanna Bispo
Jornal de Brasília/Agência de Notícias do CEUB

De onde vem o seu desejo de ter um bebê? A rotina com um recém-nascido vai além do desgastante e chega ao exaustivo. Rachaduras nos seios, noites sem dormir, gastos exorbitantes, e principalmente, renúncia de si em prol do outro. E o cansaço não para depois que a criança atinge alguma independência. Muito antes da saída do hospital, a responsabilidade sempre recai sobre a mãe. 

Para muitas pessoas, essas características da maternidade são fases difíceis de um sonho: o maternar. Para outras, significa a consumação do que encontraram ao gerir um filho: um completo pesadelo. 

A psicóloga Fernanda Espíndola Allegretti explica que a maternidade compulsória consiste na prática de culturas sociais que condicionam e formam o cenário onde uma mulher se insere como mãe. A especialista é autora de um dos poucos trabalhos brasileiros sobre o assunto, intitulado “Aborto e maternidade compulsória: considerações acerca dos direitos reprodutivos das mulheres”.

“De uma forma simples, a maternidade compulsória é um conjunto de práticas sociais que levam as mulheres a uma maternidade não pensada, que faz com que elas acreditem que o caminho biológico da mulher é ser mãe. Então, elas têm esses filhos sem pensar se antes de tudo isso elas estão prontas e, mais importante, se elas querem ser mães”.

Ser mãe arrependida não significa que a mulher não ame o seu filho, mas sente a sua existência impactada pelo papel que, socialmente, devem representar ao se tornarem mães. 

Segundo a também psicóloga Tamara Levy, a sociedade obriga a mulher a achar que quer ser mãe. “A própria organização social compreende a mulher como o que vem da mãe e obrigam que ela se identifique nesse lugar, muitas se identificam, mas outras não. A gente vê o reflexo disso no psicológico dessas mulheres, como essas relações afetam diretamente a saúde mental delas”, conta Levy. 

Quem vive na pele diariamente as dificuldades da maternidade é Cristiane, mãe de Kevin* de 3 anos. “Dos 3 anos do meu filho para cá, ganhei mais de 30 kgs, aparência de 10 anos mais velha e desânimo total de tentar desempenhar outros papéis. Por mais que eu tente é praticamente impossível, somos só meu marido, que trabalha fora há mais de um ano em outra cidade, e eu morando longe de familiares. Mesmo quando estava mais perto não fez muita diferença”, inicia o relato.

Alta necessidade

Aos 25 anos, Cristiane tinha a certeza de que não iria casar ou ter filhos. Mas, ao conhecer o marido, em 2011, ela repensou e eles se casaram em abril do ano seguinte. “Eu nunca me imaginei sendo mãe e não via a menor necessidade disto e até então meu esposo também, só nós 2 nos bastávamos.”

Seis anos depois, porém, a ideia de ter um filho parecia menos relutante e mais real. “Eu, sempre fui muito segura do que queria ou não queria para minha vida e até hoje me pergunto de onde tirei a ideia de que não ser mãe poderia me acarretar em arrependimento”, continua Cristiane.

Com mais um ano de conversas, os dois decidiram apenas tentar. “Não houve pressão entre nós dois, decidimos juntos e pensamos igual o tempo todo. Depois de um ano de conversa, com sete anos de relacionamento, começamos a tentar e caso eu não engravidasse até os 32 anos, não tentaríamos mais. Só que não teve tanto tentar, na primeira tentativa, engravidei.”

Do primeiro mês ao nono, ela conta que sua gravidez se resumiu a hiperêmise gravídica, ou seja, a ocorrência constante de vômitos e náuseas, além de repouso absoluto devido a um alto risco de aborto espontâneo, falta de ar, hemorroidas, perda de peso e falta de apetite.

“Desde a barriga, quando pude começar a sentir meu filho mexer percebi que era exagerado, apesar de ser mãe pela primeira vez. A noite ele não me deixava dormir, mexia-se o tempo todo e de forma abrupta a ponto de eu ficar sem ar às vezes”, relata a mãe.

Após nove meses do que seria o resto de uma vida, Kevin* nasceu no dia 25 de julho de 2019. Foram dois dias na maternidade e ininterruptas 48 horas de choro do recém-nascido. O colostro, o primeiro leite produzido, de Cristiane não descia e, mesmo com a possibilidade de uso da fórmula, os enfermeiros queriam forçá-la a amamentar. “Ficavam dando fórmula pingado para me forçar a amamentar e quanto mais as enfermeiras me cobravam era pior. Minha vontade era sair correndo dali”, relembra.

Mas o que já se mostrava difícil, se tornava cada vez pior, e, logo nos primeiros dias, a mãe percebeu que seu filho era diferente. “Que todo recém-nascido chora muito e dorme mal todos sabem, mas o meu era além do esperado”, ressalta. 

No terceiro mês, Cristiane percebeu que Kevin era diferente. Os choros nunca paravam e pareciam aumentar cada dia mais. Nada parecia satisfazê-lo. “Fora a impaciência nítida, mesmo tão pequeno era notável. Descobri o termo ‘High need’.”

Como Tamara explica, o termo “High need”, ou “Alta necessidade”, em tradução literal, ainda está sendo estudado, mas se trata de uma identificação de bebês que demandam mais cuidados e atenção que o “normal”. No caso de Kevin, desde o primeiro dia, não havia ninguém que não fosse a mãe. Prestes a completar quatro anos, foi apenas recentemente que ele passou a aceitar o pai. 

Além do comportamento diferente, Kevin apresenta atraso na fala, e, hoje, é acompanhado por especialistas, como neurologista e fonoaudiólogo, buscando as melhores formas de se lidar com ele.  “Não sei se minha vida seria diferente caso ele não fosse assim, mas nesse formato eu vi e vejo minha vida maternal ocupar todos os demais espaços existentes, não existo mais como nada, só como mãe”, desabafa Cristiane.

“Meu cansaço psicológico é tão grande que vivo numa perturbação mental de guerra entre racional e emocional sem fim. Não tenho mais sossego, nem físico, tampouco mental”, conta a mãe de Kevin*.

Fugindo das estatísticas, Cristiane tem uma vantagem à maioria das mães: seu marido. “O único com quem eu podia dizer como de fato me sentia, era meu esposo. Ele sempre me deu apoio como marido, pai e amigo, posso ser verdadeira sobre como me sinto sem ser julgada, pelo contrário sou muito amparada”, relata com carinho.

Mesmo com todo o cansaço e dificuldades, Cristiane diz que, no caso dela, se arrepender não interferiu no amor que ela sente por Kevin. “Existe como amar meu filho, não gostando de ser mãe? Se tudo que faço e aguento por ele não for por uma infinita responsabilidade afetiva além de física, ou seja, amor. Então não sei mais o que é”, finaliza.

A representatividade que Cristiane procura pode ser encontrada nas redes sociais, em grupos onde mulheres por todo o mundo deixam seus relatos e tentam apoiar umas às outras. Navegando pelo Instagram, é possível encontrar a página “Malternidade”. 

É preciso atender a necessidade de falar 

A ‘Malternidade’ foi criada em 2018. Quem se depara com o perfil pela rede social vê que o espaço de desabafo de uma mãe cansada, se tornou o local de fala de tantas outras mulheres. O grupo, hoje, tem quase 5 mil seguidores, a maioria mulheres.

Criada por uma advogada, mãe de uma menina com transtorno do espectro autista (TEA), a mulher, que prefere não se identificar, conta que a página surgiu da sua necessidade de falar. “Foi apenas para desabafar, eu estava em um momento muito difícil e queria dizer. Não era suficiente falar para minha mãe, pai ou amigos, eu queria externar para outras pessoas e comecei a escrever um diário virtual”. 

O nome que vincula o ato materno à maldade, vem de como ela se sente. “Veio de mim, de como eu enxergava a maternidade, me fez muito mal”. Apesar de como é chamada, ela afirma que a página virou um espaço seguro e, ao contrário do que acham, não demoniza as crianças. “É justamente por esse pensamento de que a criança não tem culpa de nada que a gente estabelece um diálogo legal, e aprendemos a lidar com essa carga tão pesada sem descontar na criança. Eu apenas mostro a maternidade real, sem nenhum corte”. 

Certa de que é uma vítima da maternidade compulsória, a dona da página jamais quis ter filhos. Já casada e feliz no matrimônio, começou a se questionar com 35 anos, quando o ‘relógio biológico’, também sentido por Cristiane, bateu à porta. ‘Meu Deus, e agora?’, pensava insistentemente diante a pressão social que sentia. Por fim, cedeu. ‘Se eu não tiver agora, eu não vou ter mais, todo mundo tem’, foi dito ao veredito.

“Eu nunca quis ser mãe, via minhas amigas engravidando e isso não me despertava nada. A pressão não veio de família, nem de marido, mas da idade. Com 35 anos começou aquela coisa toda. Eu sabia que eu não queria, mas acabei engravidando. Foi pela pressão social mesmo, de coisas que a gente vai sendo exposta desde a infância”, disse. 

Alegretti explica de onde vem essa influência invisível sentida pela dona da página. “Desde criança, nós somos apresentadas ao mundo dos cuidados, que é majoritariamente feminino. Tanto que, hoje, nas faculdades de enfermagem, psicologia, você encontra majoritariamente mulheres. Enquanto os meninos brincam de super-heróis e carros, nós, mulheres, brincamos de mamãe e filhinha”, diz. 

A página criada por ela abre um espaço necessário. Levy informa que esse tipo de local é difícil de encontrar, além de muito necessário. “Lidar com isso não é muito fácil, você conseguir falar abertamente da sua frustração em relação a maternidade é difícil porque a sociedade pensa ‘olha só que absurdo, que mulher má, essa mãe que não quer ser mãe’. Quando na verdade é completamente esperado que isso aconteça em algum momento”.

Apesar de uma legião de mães arrependidas, existem mulheres que conseguiram enxergar a mão da maternidade compulsória sobre elas e escaparam de uma vida de arrependimento. Para elas, ainda resta o julgamento social sobre uma mulher sem filhos. 

‘Nessa história eu não caí’

Joseina é técnica em enfermagem e biomédica, apaixonada e muito focada na carreira, aos 20 e poucos anos ela se deparou com a dúvida que muitas mulheres, quando já não tem a ‘certeza’ desde a infância, têm. ‘Eu quero mesmo ser mãe?’. Por um tempo acreditou que sim, porque não teria filhos? Toda mulher tem. 

Muitos passos depois, aos 33 anos, caiu em uma crise depressiva muito forte, diversas questões e partes de sua vida, somadas àquela dúvida insistente fizeram com que ela começasse a revisitar sua trajetória. Quando se reconheceu como Joseina, mulher forte de 31 anos, que não iria sujeitar sua história ao desejo alheio, percebeu que naquela história não caíria.

“A crise que eu tive em 2013, me mostrou que ser mãe não era para mim. Na verdade, o que eu queria era suprir aquela ideia de que ser mãe é uma coisa universal da mulher. Eu não preciso ser obrigada a querer ter filhos, é uma coisa de cada uma”, relembrou. 

Tomada a decisão, é chegada a hora de informar quem estava ao redor. Começou pelo seu companheiro e os dois estavam alinhados. A primeira pedra que encontrou foi na família, sua mãe teve bastante resistência com a ideia. O pai, aceitou. 

A resistência da mãe, no entanto, seria o início de uma pressão social em cima de uma decisão pessoal. Joseina perdeu o pai em fevereiro deste ano. Em meio a mensagens de luto e apoio, viu uma situação que nada tinha a ver com a ocasião, ser revisitada. “Agora seu pai morreu e tu não deu um neto para ele”, foi dito à ela. “Foi muito barra pesada, hoje eu entendo que, se nem pai me cobrava, porque eu vou aceitar que me cobrem?”, disparou. 

Para consumar a vontade, decidiu fazer uma laqueadura. “Eu já tinha 40 anos, a época de ter filhos já foi, e mesmo assim os médicos não quiseram fazer”.  Ao visitar o consultório de uma médica, escutou que precisava da autorização de freiras do local. “Dá pra acreditar? Fiquei mais assustada porque era uma mulher me dizendo isso. Eu não tenho que pedir autorização para ninguém, a única conta que eu devo prestar são as legais, que estão na constituição, e isso eu tinha, mesmo assim foi muito complicado”. 

Apesar da resistência, a biomédica concluiu a laqueadura, depois de obter ajuda de uma advogada especializada em direito reprodutivo. Sem qualquer chance remota de engravidar hoje em dia, recai sobre ela outro questionamento. “Você não se arrepende?”. Ela responde com convicção: “As pessoas acham que não ter filhos me afeta psicologicamente, mas é o contrário. Foi justamente depois da decisão que eu me libertei, vi meus limites e me aprofundei em mim mesma”, finaliza, em paz.

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