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Política & Poder

Sob estigma da pizza, CPI da Americanas propõe leis contra corrupção corporativa

Segundo especialistas, elas miram lacunas relevantes, que hoje dificultam a punição de envolvidos em casos de corrupção corporativa

Redação Jornal de Brasília

16/10/2023 12h23

Uirá Machado
São Paulo, SP (Folhapress)

A CPI (Comissão Parlamentar de Inquérito) que investiga a Americanas terminou sob o proverbial estigma da pizza, mas deixou como legado um pacote de quatro projetos de lei para tentar evitar que fraudes similares voltem a ocorrer.

As propostas começaram a andar na Câmara dos Deputados na semana passada. Segundo especialistas consultados pela reportagem, elas miram lacunas relevantes na legislação brasileira, que hoje dificultam a punição adequada de envolvidos em casos de corrupção corporativa.

Até o momento, o próprio caso da Americanas serve de exemplo. Embora a companhia tenha entrado em recuperação judicial com dívidas declaradas de R$ 43 bilhões, a CPI não chegou a apontar responsáveis pelo rombo.

No relatório final da comissão, o deputado federal Carlos Chiodini (MDB-SC) diz que, apesar de as provas indicarem a participação de ex-executivos e ex-diretores da empresa na fraude, elas não eram fortes o suficiente para chegar a uma lista de nomes.

Mesmo que fossem, contudo, haveria uma segunda dificuldade para a devida responsabilização dos culpados: o Brasil não tem leis para punir à altura crimes dessa natureza. Daí por que Chiodini espera que os projetos de lei avancem sem sobressaltos no Congresso. “Os parlamentares com quem tenho conversado mostram-se abertos ao diálogo e interessados na celeridade da tramitação”, diz à reportagem.

“[As propostas] são um importante aprimoramento legislativo visando prevenir a ocorrência de crimes semelhantes no futuro, incluindo a implementação de punições mais severas e incentivos para denunciantes”, completa.

De acordo com Ana Elisa Bechara, professora de direito penal da USP, o caso da Americanas mostra as fragilidades das regras atuais, já que a fraude bilionária passou despercebida por muito tempo e em várias camadas de supervisão. “Isso sugere que houve mais do que um mero equívoco contábil. Daí a necessidade de criar mecanismos de controle e de responsabilização mais efetivos, envolvendo distintas esferas”, diz ela.

Para a professora, o pacote proposto pela CPI acerta ao não tratar a questão só pelo enfoque penal; as proposições também envolvem fiscalização, prevenção e responsabilidade civil (patrimonial) dos envolvidos.

Bechara destaca o PL 4.705/23, que cria o crime de infidelidade patrimonial, definido como o abuso dos poderes de administração de um patrimônio alheio, com o fim de obter vantagem mediante infração do dever de salvaguarda, causando prejuízo ao patrimônio administrado.

Já regulado em países como Alemanha, Portugal, Espanha, Itália e Suíça, esse crime ainda não existe no Brasil, o que deixa uma brecha e tanto no ambiente do direito societário. “Claro que a proposta legislativa merece ser debatida, assim como os demais PLs apresentados, mas o relatório da CPI andou bem ao fomentar de modo construtivo essa discussão”, afirma a professora da USP.

Rodrigo de Grandis, ex-procurador do Ministério Público Federal e hoje advogado do escritório TozziniFreire, também vê saldo positivo no relatório da CPI da Americanas. Para ele, a criação do crime de infidelidade patrimonial seria um grande avanço.

“É o delito considerado mais importante do ponto de vista europeu continental”, diz ele, que estudou esse tema em seu doutorado. “Em grandes casos de fraudes bancárias e crises financeiras, ele tem sido o eixo central de punição.”

De Grandis elogia ainda as demais propostas: “Elas foram técnicas. São um primeiro passo para uma discussão legislativa que eu espero que se aprimore e estabeleça um sistema de prevenção e repressão a ilícitos financeiros muito mais adequado do que temos hoje”.

Dentre os outros três projetos, dois tratam de aspectos não criminais. O de número 4.704/23 trata da responsabilidade civil dos administradores de sociedades anônimas, com regras para ação de reparação de danos e devolução de bônus recebidos na ocorrência de fraudes, por exemplo.

São aspectos vistos com bons olhos pelos especialistas, mas, para o advogado Claudio Gomez, sócio do escritório Vidigal Neto, há alguns aspectos problemáticos na proposta.

Ele diz que, embora hoje existam barreiras e poucos incentivos para que acionistas processem administradores e controladores, uma facilitação exagerada pode ter efeitos colaterais indesejados.

“Pode-se gerar uma sensação de que uma ação pode ser iniciada a qualquer momento, diminuindo inclusive de maneira nociva o nível de segurança de tomada de decisão que um acionista controlador ou um administrador deve ter, sem em contrapartida entregar parâmetros mais claros de governança que devem ser seguidos”, diz.

No PL 202/23, que procura proporcionar às auditorias um quadro mais claro sobre o endividamento das empresas, critica a previsão de que toda e qualquer companhia fechada seja auditada por auditor independente.

O advogado afirma que essa obrigação é desproporcional e levará parte das sociedades anônimas a se transformarem em sociedades limitadas para evitar o custo adicional da auditoria.

O quarto PL, de número 4.706/23, aprimora o sistema de proteção do chamado informante de boa-fé, ou whistleblower, em inglês -pessoas que, não estando diretamente envolvidas em ilícitos, relatem e apresentem informações relevantes sobre eles.

Juliana Bonacorsi de Palma, professora da FGV Direito SP e especialista no tema, é positiva a tentativa de melhorar esse mecanismo. “Justamente porque funciona, o whistleblowing tem sido apontado como um dos principais instrumentos, se não o principal, para a detecção de ilícitos, especialmente em cenários com informação concentrada, como o mercado financeiro e de capitais”, diz.

Palma afirma, contudo, que o PL faz mudanças tímidas em relação ao que já existe hoje. Uma das alterações aumenta a recompensa do informante de 5% para 10%, tomando como base de cálculo o valor recuperado ou sanção paga.

Palma diz que o percentual deveria ser maior; nos EUA, por exemplo, ele chega a 30%. Além disso, como no Brasil existem dificuldades para recuperação de valores ou cobrança de multas, a professora considera que há pouco estímulo à denúncia.

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