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Política & Poder

Celina Guimarães Viana: a representatividade e história da primeira mulher a votar no Brasil

“Ela era uma educadora, apaixonada, e é essa a lição que tiramos dela “por que não?”, por que eles, os homens, podem e eu não posso?”, questiona Carla Viana, neta de Celina

Geovanna Bispo

30/10/2022 6h00

Atualizada 29/10/2022 10h19

Foto: Arquivo pessoal

Antes mesmo de Getúlio Vargas considerar autorizar o voto feminino no Brasil, a professora Celina Guimarães Viana já havia se registrado como a primeira eleitora do País, na cidade de Mossoró (RN), em 1927, quando o presidente ainda era Washington Luís. “É uma história muito recente e nós temos que dar graças a ela e a outras mulheres que abriram esses caminhos. Cada conquista feminina deve ser muito comemorada”, diz a neta de Celina, Carla Viana, professora do curso de letras da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

Naquele ano, o Poder Judiciário local permitiu que as mulheres da região se alistassem para votar na eleição complementar do Senado Federal. Além de Celina, outras 20 mulheres pediram o registro, mas a potiguar foi a primeira a conseguir a autorização por, naquela época, ter o aval do marido, Eliseu Viana. Porém, por não ser apoiado pelo Estado, o Senado invalidou os votos de todas.

  Foi naquele mesmo ano que os representantes começaram a discutir o papel feminino na política e os estados passaram a ter autonomia para decidir sobre a participação delas nos movimentos, seja como eleitoras ou candidatas. Apenas cinco anos depois, em 1932, as mulheres tiveram os direitos políticos reconhecidos através do Código Eleitoral, de 24 de fevereiro daquele ano. 

Mas para Carla, antes de ser “a Celina, a primeira eleitora do Brasil”, a avó era exatamente isso: uma avó. “Ela foi uma mulher interessantíssima, que eu tinha como vó, que eu convivi como vó. Eu tinha 7 ou 8 anos quando ela morreu. Então, convivi pouco com ela, mas eu tenho aquelas lembranças de dentro de casa, daquela avó que passa e faz um carinho na cabeça, que dá um beijo”, descreve, com saudade.

Em busca de Celina

Foram muitos anos depois da morte de Celina que a família descobriu quem ela havia sido para o País. Isso porque a potiguar havia morado em diversas cidades entre o Rio Grande do Norte e Minas Gerais. “Nós não sabíamos muito por ela ter nascido em Natal e depois ter ido para Mossoró, com meu avô. Essa parte da história, nós fomos descobrir bem depois”, explica Carla.

Segundo a neta, Celina e o marido, Eliseu, tiveram que deixar Mossoró por volta de 1930, por estarem sendo perseguidos por diferenças de opinião no início da Era Vargas, período ditatorial de Getúlio. “Meu avô era procurador do distrito e foi perseguido. Ele conseguiu uma transferência para o lugar mais escondido que achou, que foi Teófilo Otoni (MG)”, explica Carla, com base nas histórias que o pai contava.

Além de procurador, Eliseu também era advogado e professor, assim como Celina. Antes de ir para Teófilo Otoni, cidade que fica a cerca de 343 km da capital mineira, o casal tinha uma vida movimentada em Mossoró. “Meus avós tinham muitas coisas interessantes, eles sabiam várias línguas, liam jornais de várias partes do mundo e gostavam de contar as coisas que aconteciam para os vizinhos”, conta a neta animada.

Na pequena cidade mineira não seria diferente e, logo que chegaram na região que hoje tem pouco mais de 140 mil habitantes, o casal mostrou sua cumplicidade para os mineiros. “Eles amavam contar histórias, conhecer o mundo, saber de tudo que estava acontecendo. Era um casal muito antenado, que se fortaleceu muito, que se apoiou muito.”

Um dos principais momentos do casal foi a adoção do pai de Carla, Pedro Wilson, em 1931. “Na época, adotar era uma coisa muito complicada. Era vergonhoso para o adotado, era uma questão delicada e as pessoas tinham muito preconceito”, explica. 

Segundo a professora, o pai era filho da empregada da vizinha do casal de professores, que teria se envolvido com um alemão e acabou se tornando mãe solo. Em meio a uma suposta depressão pós-parto e sozinha, a mulher tentou matar o recém-nascido. “Quando a vizinha viu a situação toda, ela ofereceu a criança para a minha avó. Ela sempre quis ter filhos, mas nunca conseguiu engravidar. Então eles adotaram meu pai. Ele acabou virando médico, teve muito incentivo dos dois, a melhor educação, aprendeu várias línguas, várias histórias”, celebra. Em 1944, o casal se mudou para Belo Horizonte, acompanhando Pedro que iria começar o curso de medicina na UFMG.

E foi exatamente o apoio e a evolução de ambos que ajudou Celina a chegar até as urnas. “Ela era uma pessoa com um temperamento e personalidade muito fortes e muita vontade própria. Minha mãe contava que ela nunca fazia nada que ela não quisesse fazer. Ela falava ‘foi Eliseu que me incentivou’ e claro que teve esse incentivo, mas também teve a vontade dela”, explica.

As potiguares

Mas o pioneirismo potiguar não se limita a Celina. Além da professora, outras mulheres se alistaram como eleitoras, como Júlia Alves Barbosa, a segunda autorizada a ir às urnas. 

“O Rio Grande do Norte foi pioneiro no voto feminino. Enquanto no resto do Brasil esse direito só foi garantido em 1932, por meio do Código Eleitoral, aqui, por meio de uma lei estadual de 1926, que foi sancionada pelo então governador José Augusto, as mulheres puderam se alistar e ter a capacidade eleitoral passiva, que é o direito de votar e ser votada”, explica a juíza do Tribunal Regional Eleitoral do Rio Grande do Norte (TRE-RN), Adriana Magalhães. 

A magistrada é autora do livro ”Marias: as mulheres e os espaços de poder no Rio Grande do Norte”, previsto para ser lançado ainda em 2022, em evento que comemora os 90 anos do voto feminino no Brasil.

Segundo Adriana, foi com a ajuda da ativista pelos direitos políticos femininos, Bertha Lutz, que as potiguares conseguiram esse avanço. A educadora e bióloga tinha uma amizade próxima com o senador Juvenal Lamartine, que contou a Bertha sobre a lei que seria sancionada sobre o exercício do voto e, por meio de uma sugestão dela, o político solicitou ao governador a alteração no texto. 

“A lei já estava pronta, porém, Juvenal, por meio de um telegrama, sugeriu ao governador que incluísse que ‘no estado do Rio Grande do Norte, poderiam votar e serem votados, sem distinção de sexo’. A partir da adição do ‘sem distinção de sexo’, as mulheres puderam adquirir a capacidade eleitoral”, esclarece a juíza.

Porém, para a magistrada, o pioneirismo potiguar vem de muito antes. Na verdade, há mais de 200 anos. Em 1810, na então cidade de Papari, nascia Nísia Floresta Brasileira Augusta, considerada a primeira feminista brasileira. “Nísia Floresta saiu daqui, e embora ela não fizesse um engajamento político direto, ela era muito articulada no sentido de preparação das mulheres. Eu sinto que muito desse pioneirismo do Rio Grande do Norte vem desde Nísia, até chegar nas outras”, diz Adriana, orgulhosa da história do estado, que se tornou parte de sua própria vida.

Ainda que as mulheres tivessem a força de vontade, o sistema machista e patriarcal fez com que elas precisassem do apoio e autorização dos maridos, pais e irmãos para conseguirem entrar no mundo político, assim como Celina precisou de Eliseu. “Eu acredito que havia uma vontade própria de assumir um papel e protagonismo político, mas também foi preciso o estímulo por parte do entorno”, explica Adriana.

No caso de Celina, o apoio a ajudou a ter o processo eleitoral aceito mais rápido que o de Júlia, que, na época, não era casada e não teve auxílio de nenhum homem. “Mesmo os processos tendo sido feitos juntos, o de Celina foi mais rápido pela anuência do marido. O de Julia demorou por ela ser solteira e o trâmite em si foi mais complicado por não haver ninguém para pedir ‘autorização’ para o alistamento.”

Além de Celina e Júlia, as primeiras eleitas também pertencem ao estado. Alzira Soriano foi a primeira prefeita eleita não só no Brasil, mas também em toda a América Latina, em 1928, e Carlota de Queiroz, a primeira deputada estadual eleita do país, em 1933. 

Orgulho e busca

Segundo Adriana, a história das pioneiras políticas e feministas são, até hoje, motivo de orgulho para as potiguares. “Desde as pioneiras até hoje, existe muita respeitabilidade e apoio para que as mulheres ocupem locais de poder político.”

De 2018 até hoje, o estado é o único governado por uma mulher, Fátima Bezerra (PT), que foi reeleita nestas eleições, e o que teve o maior número de governadoras na história brasileira, com três mandatárias. Ainda assim, segundo o Tribunal Superior Eleitoral (TSE), mesmo com 52,8% dos eleitores sendo feminino, o número de candidaturas de mulheres em lugares de poder ainda é baixo. 

Foi exatamente essa busca por mais lugares de poder que fez Adriana Magalhães começasse a escrever seu livro. Em 2017, quando foi nomeada juíza substituta, a magistrada procurou saber quem havia sido as mulheres a sentar na mesma cadeira que a dela e se surpreendeu ao descobrir que, nos 90 anos de tribunal, apenas outras três estiveram ali. “Minha pesquisa começou no judiciário, em quantas desembargadoras já passaram no Tribunal de Justiça, quantas desembargadoras passaram pelo TRE, e eu comecei a compilar esses dados. A partir daí, fui ampliando para outros poderes.”

Segundo ela, a presença feminina em tribunais superiores ainda é de 10%. “Na primeira instância, onde o ingresso é por meio de concurso público, a presença feminina é crescente, com 40%. Quando nós vamos subindo, os números vão minguando. No Supremo Tribunal Federal (STF), de 11 ministros, apenas duas são mulheres. E antes delas, houve apenas uma, a Dra. Ellen Gracie”, aponta a juíza.

Família Viana

Hoje morando em Belo Horizonte, a parte feminina da família Viana é composta por Carla, sua filha, duas irmãs e suas duas sobrinhas. Com tanta representatividade, a professora conta que Celina é a inspiração para as seis. “Nossas filhas, que hoje têm 20 e poucos anos, cresceram sabendo dessa história e já cresceram discutindo a questão do que é ser mulher, o que são nossos direitos, da igualdade, do que é o machismo, o empoderamento.”

Carla ainda exalta e faz questão de lembrar que, ainda que tenha sido a primeira, Celina não era a única. “Não foi uma coisa que partiu só da cabeça dela, foi um movimento que já estava no ar, as mulheres já estavam querendo isso. Não foi uma coisa que uma mulher isoladamente resolveu fazer, mas ela deu a sorte de ter sido a primeira”, diz.

Com a história de Celina Guimarães Viana, a eleitora, a mãe, a avó, a bisavó, a mulher, a professora, a esposa e a poliglota, as mulheres da família passaram a se questionar: “por que não?”. “Ela era uma mulher normal, como qualquer outra. Uma educadora, apaixonada, e é essa lição que nós tiramos dela ‘por que não?’, por que eles, os homens, podem e eu não posso?”.  Carla, em 2022, poderá votar, opinar sobre o destino do País e homenagear o legado que a avó deixou.

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