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Brasil

Indígenas sofrem violações nos cárceres, avalia pesquisador

Além de invisibilidade, as violências ocorrem em todo o processo, o que inclui, por exemplo, eles não terem acesso a um intérprete ou tradutor

Redação Jornal de Brasília

19/04/2022 13h00

Foto: Agência Brasil/Divulgação

Maria Luiza Castro e Lara Vitória
(Jornal de Brasília / Agência de Notícias CEUB)

Às vésperas de completar três anos, a Resolução N° 287 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) , que deveria assegurar os direitos da  população indígena condenada, ré ou privada de liberdade, não tem sido efetiva para garantir direitos elementares.

“Dentro do sistema prisional, a gente tem alas especiais em que os indígenas são mantidos presos justamente para evitar casos de tortura ou de violência praticada por outros não indígenas dentro do mesmo contexto e pra evitar que eles sejam cooptados pela criminalidade organizada”, avalia o pesquisador Tédney Moreira da Silva, membro do Conselho Superior do Observatório Sistema de Justiça Criminal e Povos Indígenas, da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB).

Ele explica que essa é uma resolução muito importante porque regulamenta os procedimentos judiciários que devem ser adotados em relação aos indígenas que estejam passando pelo processo penal na fase de criminalização e execução da pena. No entanto, não está em prática.

“A violação mais grave é a invisilibilidade. Os indígenas ainda infelizmente são encarados na nossa sociedade como incapazes de exercitar seus próprios direitos”.

Além de invisibilidade, as violências ocorrem em todo o processo, o que inclui, por exemplo, eles não terem acesso a um intérprete ou tradutor.

Em seu artigo a respeito do Encarceramento de Indígenas e a Resolução N º 287, Tedney e a professora de direito Ela Wiecko de Castilho afirmam que, mesmo com o avanço inequívoco no tratamento judiciário de indígenas no Brasil, a Resolução reproduz uma lógica colonial na sociedade. “A resolução não foi elaborada em parceria direta com os povos originários, não houve uma oitiva prévia desses povos, o que contraria os objetivos da resolução”. 

O professor afirma que o racismo estrutural contra os povos indígenas é um problema crônico do Brasil. “Nós somos uma sociedade ainda hierarquizada, que tende a se considerar mais europeia do que brasileira que por consequência acaba provocando uma violência estrutural contra seu próprio povo”, explica.

Confira abaixo a entrevista:

Agência Ceub – Quais foram as principais conquistas da Resolução 287/2019 mil em relação à garantia dos direitos dos indígenas?

Tédney Moreira da Silva – A resolução é muito importante porque regulamenta os procedimentos judiciários que devem ser adotados pelos processos judiciais indígenas pelo Poder Judiciário em relação ao processo penal, tanto na fase de criminalização como na fase de execução da pena. É muito importante porque visa justamente a dar visibilidade a essa população.

As leis são aplicáveis ??aos indivíduos e, portanto, a combater toda a forma de racismo institucional em relação a esses povos, temos uma determinação por exemplo de autoridades judiciárias

Conhecer a etnia do indígena que está sendo acusado da prática de um crime e proceder a sua defesa junto aos órgãos institucionais competentes, incluindo a Fundação Nacional do Índio (Funai) e outras instituições também como a Defensoria Pública e o Ministério Público.

Prevê a possibilidade de um intérprete ou de um tradutor e o acompanhamento do processo penal por um advogado ou uma defesa competente que compreende das dinâmicas culturais desse povo. Então é uma resolução que tenta dar uma garantia ao reconhecimento à diversidade constitucional.

Agência Ceub – O senhor, em seu artigo, avalia que existem incoerências na resolução apesar das conquistas. O senhor pode explicar um pouco mais sobre isso?

Tédney Moreira da Silva – Consideramos que, embora tenha tido um avanço inequívoco no tratamento judiciário dos povos indígenas no Brasil, a sociedade está reproduzindo muito de uma lógica um tanto quanto colonial que nós ainda temos na medida em que não foi elaborada em parceria direta com os povos originários.

Não houve uma oitiva dessas pessoas o que de uma certa forma contraria a resolução e os objetivos da resolução. Então é um paradoxo porque, ao mesmo tempo em que o CNJ
tenha a boa vontade de começar a inserir os povos indígenas, nesse debate não teve o cuidado também de ouvi-los previamente na elaboração dessa resolução.

Agência Ceub – Podemos dizer que essa é uma lei que não pega?

Tédney Moreira da Silva – Só a resolução não vai bastar pra mudar um quadro de racismo institucional estrutural que a gente tem na sociedade brasileira em relação aos povos indígenas. A resolução determina as autoridades que os juízes e outras partes que estão vinculadas ao processo penal podem atuar no sentido de respeito aos povos indígenas.

Há uma dificuldade de entendimento de como agir diante de casos que indígenas são acusados ??de prática de crime. Então a resolução ela é um grande passo, mas ela sozinha não vai se transformar em realidade.

Agência Ceub – Quais seriam as principais violações por quais os indígenas passam no sistema penal?

Tédney Moreira da Silva – A primeira e mais grave delas no meu entender é a invisibilidade. Os indígenas ainda infelizmente são encarados na nossa sociedade como incapazes de exercitar seus próprios direitos. A manutenção de um órgão tutelar como é a Funai. Então, dentro do sistema carcerário, a gente tem, além de um racismo provocado por essa invisibilidade, a violência praticada contra os povos indígenas no Brasil.

Dentro do sistema prisional, a gente tem alas especiais em que os indígenas são mantidos presos justamente para evitar casos de tortura ou de violência praticada por outros não indígenas dentro do mesmo contexto e pra evitar que eles sejam cooptados pela criminalidade organizada.
Nós temos infelizmente dados que demonstram isso: altos índices de suicídio, de tortura e de outras violências institucionais que os indígenas passam no sistema carcerário.

Agência Ceub – O senhor vê um componente de racismo nas decisões judiciais contra os indígenas, certo? Isso ocorre hoje mais do que outros momentos da história brasileira?

Tédney Moreira da Silva – Esse é um é o problema crônico do Brasil. Temos uma colonialidade dentro de nós. Ou seja, a gente não é mais colônia de Portugal desde 1822, porém a colonialidade ainda existe na nossa cultura. Nós somos uma sociedade infelizmente ainda hierarquizada. Que tende a se considerar mais europeia do que brasileira e que, por consequência, acaba provocando uma violência estrutural contra o seu próprio povo.

Não é de hoje que o racismo provoca essa invisibilidade e também violências institucionais que nós temos também no poder judiciário. No meu entender, o direito penal é o espaço de manutenção dessas desigualdades.

O juiz quando declara que o indígena é inimputável é um termo específico no direito penal pra se referir a uma pessoa que não tem capacidade mental de tomar as suas próprias decisões. Quando ele decide com base nesse critério, ele está manifestando um racismo.

A gente não pode partir da do pressuposto de que por serem indígenas e por sermos não indígenas estamos numa posição desequilibrada em que nós estamos por cima e os indígenas estão por baixo. A gente precisa respeitar a diversidade étnica e em decisões judiciais em que isso não é abordado com suficiência.

Agência Ceub – Professor, isso ocorreu também antes de todas as garantias da Constituição de 1988, nos períodos ditatoriais brasileiros, certo?

Tédney Moreira da Silva – Sim, a ditadura foi um período de exceção da nossa democracia, mas que, ao mesmo tempo que foi uma exceção, ela de novo acaba gerando toda a violência ainda não resolvida da nossa colonialidade. Então, indígenas foram muito torturados durante a Ditadura Militar. Aliás, a Comissão Nacional da Verdade em 2014, quando fez o levantamento das vítimas de ditadura da ditadura, demonstraram pra nós esses dados que os indígenas foram as maiores vítimas do sistema ditatorial.

Isso ocorreu em razão dos grandes empreendimentos que foram realizados no âmbito da ditadura, como por exemplo, a construção da Transamazônica, que cortou grande parte das terras indígenas pela metade e provocou uma escalada enorme de mortandade entre povos originários, em especial, na região da Amazônia. A gente tem uma perpetuidade dessa violência no Estado e isso portanto acaba resultando em mais violência para os povos originários nos dias de hoje.

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