Menu
Brasília

Analfabetismo invisibilizado no DF: histórias de busca pelas letras e a diferença que faz a leitura

“Foi horrível para mim, me senti um lixo e entrei numa depressão que luto até hoje. Minha filha vem às vezes me visitar, mas ela não me vê como mãe”, conta a mulher

Redação Jornal de Brasília

13/01/2023 12h27

Foto: Ana Carolina Tomé/Agência de Notícias CEUB

Ana Carolina Tomé
(Jornal de Brasília/Agência de Notícias CEUB)

A casa de Prisciana Bonfim Carvalho, de 29 anos, está cheia de gente, de lembranças, de temor e até de esperança. No barraco alugado em um bairro de Ceilândia moram ela, o marido e outras quatro crianças. A TV está ligada no volume alto. O cachorro não para de latir. Tem barulho de moto na rua e crianças correndo dentro de casa. Mas, apesar de toda a movimentação e barulho, há silêncios estarrecedores e um vazio. Entre tantas dores, Prisciana é analfabeta – parou de estudar aos 12 anos de idade para trabalhar. A falta de instrução gerou, ao longo da vida da mulher, uma série de dificuldades que permanecem até hoje.

“Eu parei de estudar porque fui expulsa de casa. Na época, o marido da minha mãe pediu para ela escolher entre ele e eu. Por isso, precisei morar com uma tia minha no entorno do DF e lá precisei trabalhar para ajudar nas contas”, diz Prisciana.

A barreira intelectual gerada pela falta de estudo pesou sobre a mulher quando a avó paterna da sua primeira filha apresentou alguns papéis alegando que tinha conseguido a guarda da criança na justiça. Na época, Prisciana tinha 17 anos e não sabia ler e nem escrever. Abraçada pela falta de instrução, ela não foi atrás dos seus direitos e acabou sendo esmagada por uma tristeza profunda. “Foi horrível para mim, me senti um lixo e entrei numa depressão que luto até hoje. Minha filha vem às vezes me visitar, mas ela não me vê como mãe”.

Depressão

A história de Prisciana tem letras difíceis. Ela também desenvolveu depressão pós-parto há 2 anos depois de ter tido Prisciele, penúltima filha. A mulher passou a gravidez muito abalada, porque sem o estudo completo, não conseguia um emprego e mal sustentava os filhos. Depois que a criança nasceu, a mãe tentou se matar e precisou ser internada em estado grave.

Durante o tempo em que ficou internada no hospital, ela recebeu ajuda de psicólogos, médicos e enfermeiros. A rotina despertou nela o sonho de ser médica. No entanto, a falta de assistência e as barreiras do dia a dia a impedem de realizar seu sonho.

Dificuldades

No dia em que Prisciana foi até o cartório registrar Bryan, de 6 anos, ela teve dificuldade para escrever o nome do filho. “Eu não conseguia falar direito o nome dele, mas era o que eu queria”, diz. Por outro lado, a criança adora escrever o próprio nome e sabe de cor. Bryan, que está em processo de alfabetização na educação infantil, registra seu nome nas paredes de todos os cômodos da casa.

Mas a dificuldade para ler e escrever não é só um problema enfrentado pela mãe do menino. No Distrito Federal, quase 82 mil pessoas são analfabetas, a grande maioria composta por mulheres – segundo um estudo do Instituto de Pesquisa e Estatística do DF (IPEDF). Os dados revelam ainda que cerca de 53 mil pessoas sem instrução são pretas ou pardas e a maioria é composta por moradores de Ceilândia – cidade administrativa com maior incidência de pessoas em vulnerabilidade social.

Paula Gomes, professora da Universidade de Brasília (UnB) especialista em alfabetização, diz que o analfabetismo na capital é o reflexo da falta de políticas públicas vista em todo o país. “O Brasil é herdeiro de uma política de educação ainda precária para os alunos que não foram alfabetizados na idade esperada. Nós tivemos o plano nacional de educação que tem como meta erradicar o analfabetismo no país, mas as políticas públicas não são suficientes para atingir essa meta”, diz.

Desafios

Além da falta de assistência do Estado, a ausência de tempo dos alunos e de incentivo impedem que o público analfabeto retome os estudos na capital, já que muitas pessoas exercem funções em trabalhos braçais durante o dia e chegam em casa cansados. Acostumados a buscar o sustento da família, muitos deixam o estudo em segundo plano.

“As mulheres pretas e de baixa renda são as mais afetadas pelas dificuldades no aprendizado, por conta de fatores como o desemprego, a violência familiar, a maternidade, as condições precárias de trabalho e todo o contexto da vida da mulher na sociedade. Tudo isso favorece que ela não retome os estudos”, diz a especialista.

A professora ainda diz que apesar dos desafios enfrentados, os analfabetos chegam até a fase adulta com algumas habilidades. Isso porque pessoas que não têm acesso ao mundo da escrita costumam enxergar mais as placas de sinalização, ícones, padrão de textos e outros símbolos.

Ela também afirma que essas pessoas trabalham bem a memória. “Os analfabetos memorizam mais as informações que são passadas. Eles gravam o número do ônibus que pegam para trabalhar, as operações básicas de matemática para pagar contas e muito mais”.

Mas essa memória funcional tem limitações , a neurologista Vanessa Gil, diz que pessoas analfabetas têm mais prejuízos na memória do que pessoas que terminaram os estudos. “ Os analfabetos costumam ir mal no teste de memória, já que são afetados pela falta de estímulos cerebrais durante a vida. O não exercício da mente também pode provocar em pacientes idosos mais chances de desenvolver demência”, ressalta a profissional.

Analfabetos que buscam por educação

A 9 km da casa de Prisciana tem uma escola que funciona no período da noite como supletivo para a Educação de Jovens e Adultos (EJA). A Escola Classe 66 está localizada no Sol Nascente, o segundo maior “aglomerado subnormal” do Brasil, como classifica o IBGE o que habitualmente chamamos de favela. A região tem 24 mil domicílios, sendo superada apenas pela Rocinha (RJ), segundo dados do IBGE.

O colégio fica em uma área com pouco policiamento e quase não tem postes de iluminação ao redor. No local tem apenas um guarda da escola que fica na portaria da instituição. Em uma sala, estudantes da EJA assistem um filme educacional, já na sala ao lado – alunos do primeiro segmento de alfabetização aprendem a escrever palavras como carro, tijolo e janela.

Sentada em uma das cadeiras da frente, bem humorada e com os olhos bem atentos à aula, Vilma Justino, de 48 anos, se esforça para vencer a barreira intelectual que a acompanhou durante anos. A mulher, assim como tantos outros analfabetos, parou de estudar na infância para trabalhar.

Hoje desempregada, ela vai todos os dias para a aula. Desinibida, a aluna é muito participativa. “Eu estudo porque sonho em conseguir um bom emprego para poder realizar meu sonho de ter uma casa bem grande e sei que a educação é o caminho”, ressalta.

Para a mulher, o maior orgulho de sua vida será quando ela conseguir ler e escrever um verso sem precisar de ajuda. Os pais de Vilma e alguns de seus parentes também são analfabetos, por isso ela representa um novo parágrafo na história da família.

Apesar disso, há dificuldades que desmotivam a mulher. “Eu gosto daqui da escola, dos alunos e professores, o problema é só quando chove, porque não consigo vir. Aqui quando começa (a chuva) fica tudo alagado e é difícil andar nas ruas”, compartilha.

Na mesma sala, outra aluna. Ednalva dos Santos, de 48 anos. Uma mulher alta e vaidosa que foi motivada pela filha, de 20 anos, a entrar no colégio. Após muito tempo sem frequentar uma escola, ela diz que não se lembra em qual série parou nos estudos.

Ednalva sai da instituição às 22h e precisa acordar às 4h da manhã para trabalhar no dia seguinte, mas ela não perde o foco. “É muito difícil conciliar trabalho e estudo, ainda mais eu que acordo cedo. Tenho me esforçado para vir porque acho a educação importante em todos os sentidos” afirma.

A mulher trabalha como auxiliar de limpeza, mas está de aviso prévio. Depois que sair do emprego, ela não sabe o que vai fazer, já que não tem perspectiva para um novo trabalho. Desmotivada, ela diz “Nós, que não temos estudo, o que vier a gente pega. Nós não temos que escolher o emprego, infelizmente”.

Atrás de Ednalva, está sentada Clarina Senna, uma mulher de baixa estatura e um pouco tímida. A aluna chegou a ser alfabetizada na infância, por isso tem menos dificuldade nas atividades. Ela também parou de estudar para trabalhar e sustentar a família.

“Meu pai deixou minha mãe com oito filhos e, como eu sou uma das mais velhas, a responsabilidade era maior pra mim. Lembro de ir para a escola mais nova, o nome do professor que me ensinou a ler era Misterdã”, diz.
Atualmente Clarina faz trabalho independente como doméstica. Até 2020, ela tinha um emprego fixo, mas, depois da pandemia, perdeu o emprego. Entre tantas dificuldades, ela quer terminar os estudos para incentivar a família. “Eu sempre digo para os meus filhos irem para o colégio e ter um trabalho bom para não ficar na mesma situação que a minha”, acrescenta.

Além da empregabilidade, há outras razões que fazem com que os analfabetos retornem à escola. Alguns desejam ler a bíblia, tirar carteira de motorista e ter mais autonomia nos afazeres do dia a dia.

A professora das alunas, Suhelem Brasil, está há 12 anos na Educação de Jovens e Adultos e afirma que “muitos alunos chegam empenhados no primeiro semestre, parece até que é promessa de ano novo, mas no segundo semestre os alunos vão ficando desmotivados”.

Políticas públicas voltadas para os estudantes ausentes e a busca ativa dos desistentes poderiam ajudar a manter os alunos na escola. A assistência, no entanto, tem deixado a desejar. Para a professora, o período de crise causado pela covid-19 evidenciou a falta de investimento na educação desse público.

“Na pandemia, os professores tiveram que fazer essa busca dos alunos por conta própria, porque não há recursos. Poderiam ter contratado um carro de som para atrair essas pessoas já que elas não sabem ler. Só que nada foi feito”, conta.

Além disso, para se comunicar com os alunos pela internet, a professora precisou usar recursos que fogem da leitura e da escrita. “Eu e outro professor do colégio buscamos os alunos pelo WhatsApp, mas muitos não têm celular. Quando quero falar com eles (estudantes) uso muito áudio e figurinha, já que não sabem ler”, acrescenta.

Paula, especialista em alfabetização da UnB, diz que o ideal para mudança no número de analfabetos no DF é fortalecer as políticas públicas. “Hoje tem muita gente querendo aprender, ainda mais no contexto de globalização e novas mídias. É preciso ter intencionalidade, fazer busca ativa, parcerias com as secretarias, bolsa de estudo, ajuda de custo, diminuir a carga horária no trabalho e mais”, retrata.

A reportagem procurou a Secretaria de Educação para saber o porquê da carência de políticas públicas no Distrito Federal para os analfabetos e questionou a gestão sobre um possível plano que abrace os estudantes da Educação de Jovens e Adultos, mas a pasta não se manifestou e se limitou a dizer que, no DF, 32.608 matrículas foram feitas para EJA em 2022. Apesar disso, em 2019, ano anterior à pandemia, 42 mil pessoas se inscreveram – 10 mil a mais do que em 2022.

Tijolo por tijolo

Aldair da Silva, de 40 anos, mora em São Sebastião, é um homem muito falante e trabalha como pedreiro durante o dia. No período da noite, também é aluno e cursa o 2° semestre de engenharia civil em uma faculdade localizada na área nobre do Distrito Federal. Mas nem sempre foi assim. O homem precisou parar de estudar na 5° série, aos 12 anos, para ajudar a família que, na época, morava no norte de Minas Gerais.

Na adolescência, passou a trabalhar em plantações de alho, batata, cebola e feijão em Niquelândia e Cristalina, no Goiás. Aldair então decidiu morar em Brasília, aos 36 anos de idade. De pedreiro a estudante de engenharia civil, ele diz que “por muito tempo eu achava que a gente poderia vencer na vida só por meio do trabalho braçal, mas percebi que isso só gera cansaço, desgaste, doenças e no fim não leva ninguém a lugar nenhum”.

Foi uma colega de Aldair que, sabendo das limitações dele por ser analfabeto, indicou um projeto de alfabetização em São Sebastião. O projeto Casa de Paulo Freire recebe pessoas sem instrução há 26 anos. Ao todo, 4,5 mil pessoas já foram alfabetizadas no local. Aldair é um deles e sente orgulho disso. “ Eu aprendi a ler e escrever no projeto, depois fui para a escola pública de São Sebastião e me formei em 2020 no ensino médio. Eu gostava de interagir nas aulas e isso me fazia muito bem, além de trazer mais conhecimento”, afirma.

O coordenador do projeto, professor Elias Silva, diz que o trabalho é realizado para resgatar as pessoas que não tiveram oportunidade de voltar à escola. “É muito importante buscar essas pessoas que tiveram que parar de estudar. Na Casa de Paulo Freire, a gente debate os temas em geral da comunidade e ensina os alunos a ler e escrever”, relata.

Durante o período em que esteve na sala de aula, Aldair percebeu que só a educação poderia mudar sua vida para melhor. Incentivado pela esposa, que não terminou os estudos, e por alguns colegas, ele passou a sonhar cada vez mais alto. “Eu quero fazer a diferença, quero crescer na vida. Vou ser a primeira pessoa formada da minha família e ter melhores condições de vida”, diz entusiasmado.

O homem, no entanto, é uma exceção – já que muitos ficam para trás ao longo da vida acadêmica. Aldair atualmente sente muita dificuldade na universidade, mas garante que se esforça para aprender o conteúdo das aulas. “Demorei a concluir os estudos, eu ficava sempre adiando, mas depois eu percebi que se não tomasse um rumo na vida nada ia dar certo”.

Estímulos

A neurologista Vanessa Gil explica que ter disciplina é essencial para o processo de aprendizado. “A motivação é passageira, para se manter viva na pessoa é preciso uma série de estímulos diários. A disciplina é necessária para o processo de desenvolvimento do aluno”.

Quando perguntei para o estudante de engenharia o que ele achava da educação no DF, ele respondeu: “É precária. Se o governo investisse mais no ensino, as coisas seriam diferentes. Com educação, a qualidade de vida das pessoas seria outra no país”.

A educação é um direito de todo cidadão brasileiro, previsto no art. 205 da Constituição Federal, com a seguinte dimensão: “A educação é direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho”.

Mas, para a professora Paula Gomes, especialista da UnB, há um ensino precarizado no DF, e esse processo mostra a fragilidade no exercício da cidadania, onde não estão sendo atendidas as necessidades básicas do ser humano. É importante ressaltar que a construção de um saber democrático e a participação ativa no contexto social é essencial para uma vida em sociedade. E, no cenário atual, os analfabetos estão longe de exercer a cidadania e viver plenamente com dignidade.

Histórias de quem não sabe ler já foram parar nas telas de cinema. Veja abaixo cinco filmes sobre analfabetismo recomendados pela reportagem

Preciosa (2010): A história se passa em Nova York, bairro do Harlem. Claireece é uma adolescente de 16 anos que sofre uma série de privações durante sua juventude. Violentada pelo pai e abusada moralmente pela mãe, ela cresce irritada e sem interesse em estudar. . A sra. Lichtenstein consegue para ela uma escola alternativa, que possa ajudá-la a melhor lidar com sua vida.

Meu nome é Rádio (2003): O filme retrata a história de James Robert, um jovem negro, analfabeto e deficiente mental, cujo apelido é Rádio porque adora rádios. Seu dia a dia se resume a rodear a cidade com um carrinho de supermercado e observar diariamente os treinos de futebol, ministrados pelo professor de Ed. física Sr. Harold Jones. Preocupado com o futuro do pobre rapaz, o técnico decide inseri-lo na rotina da escola secundária.

Central do Brasil (1998): O drama narra a história de Dora, uma professora aposentada que complementa a renda sendo escritora de cartas para pessoas analfabetas na Estação Central do Brasil, no Rio de Janeiro. Sua rotina é abalada quando uma de suas clientes morre atropelada por um ônibus e deixa sozinho o filho Josué, um pobre menino de 9 anos. Após quase vender o menino, Dora decide levar Josué ao Nordeste para conhecer seu pai.

Como estrelas na Terra (2007): Um garoto indiano sofre com dislexia e tem problemas para estudar, até que um professor de artes percebe a razão para as dificuldades nos estudos. Ele evidencia a transformação no aprendizado de uma criança com dislexia por meio de ações sensíveis e faz toda a diferença na vida da criança.

Rainha de katwe (2016): Phiona, uma garota pobre de Uganda tem grande talento para o xadrez e mesmo não alfabetizada, consegue bons resultados. Apoiada por um empreendedor social, ele alcança grande sucesso no xadrez e ajuda a sua família de forma magnífica.

    Você também pode gostar

    Assine nossa newsletter e
    mantenha-se bem informado