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Psicanálise da vida cotidiana
Psicanálise da vida cotidiana

O Vértice Artístico na Clínica Psicanalítica

De uma crônica, ou mesmo um conto de amor, começo a escrever do meu amor pela psicanálise

Carlos de Almeida Vieira

25/08/2022 12h34

“Espero que sua observância poupe esforços inúteis aos médicos que exerce a psicanálise e lhes permita evitar alguma omissão; mas devo enfatizar que essa técnica revelou-se a única adequada para a minha individualidade.”

S.Freud, in: “Recomendações ao médico que pratica a psicanálise” (1912).

“Isso se aplica a tudo o que ocorre no consultório. Mas eu digo que valeria a pena considerá-lo não o seu consultório; e sim o seu ateliê. Que espécie de artista é você? Um ceramista? Um pintor? Músico? Escritor? Na minha experiência, um número enorme de psicanalistas não sabe que tipo de artistas são. [Pergunta na plateia]: E se eles não forem artistas? [Bion responde]: Aí estarão na profissão errada.”

Wilfred R. Bion, in: ”O Seminário de Wilfred Bion em Paris” (1978)

“O termo ‘estilo analítico’, tal como uso, coloca a mesma ênfase tanto na palavra analítica como na palavra estilo. Não é analítico todo estilo que um analista pode adotar, e não todas as maneiras de praticar a psicanálise resistem a marca única do ‘estilo’ do psicanalista.”

Thomass H. Ogden, in: ”Elementos de estilo analítico: seminários clínicos de Bion” – Jornal Internacional de Psicanálise, 2007.

Querido leitor, pensava, ou antes, imaginei escrever uma pequena crônica (?), ou mesmo um escrito sobre “ O amor e o desamor”. Houve um silêncio, um instante de dúvida, um vazio próprio do ato da escrita. Vazio, fugiu o tema, caí em angústia pois queria escrever. O silêncio (gravídico) trouxe a inspiração, ou como sempre repetia Clarice Lispector, trouxe o “instante já”.

De uma crônica, ou mesmo um conto de amor, começo a escrever do meu amor pela psicanálise e do modo como trabalho e entendo os meandros da clínica. Coloco de lado, nesse instante, considerações teóricas, técnicas, acadêmicas e canônicas tão frequentes quando se escreve sobre psicanálise. Trago, as citações anteriores apontam para isso, a importância do estilo e de cada estilo de cada analista. Uma coisa é a teoria da técnica, outra coisa é a técnica, mas na prática, no “ateliê” como frisou Bion, a pessoa do psicanalista, seu estilo próprio, e acrescento, o estilo da dupla analista e analisando é que vai fazer aparecer a experiência analítica, e não uma pseudoanálise comprometida com os cânones, com a gramática e as questões da autoridade superegóica, tanto dos mestres, autores com os quais o psicanalista se identifica patológicamente, tornando-se um reprodutor do saber instituído ou um arremedo de analista, como das instituições oficiais.

Aí entra a arte, o vértice artístico, o jeito de ser do analista, sua história, aquilo que experimentou na vida de uma maneira criativa, sua cultura própria, seus afetos e desafetos, sua capacidade de estar-a-dois como um “casal procriador”.

No que toca à arte, destaco minha experiência há anos, com a literatura, com uma literatura também moderna, pósmoderna, isenta de uma escrita afogada em regras e estilos autoritários de qualquer escola. Uma literatura que tem uma escrita sobre a vida, não necessariamente sobre a narrativa dos fatos, e sim aquilo que dos fatos podem ser sentido e intuído e aproveitado para o existir humano. Uma literatura não de consumo e sim um escrita na qual o autor e leitor se leiam. Cito um exemplo retirado de um artigo de Vilma Arrêas, que compõe uma leitura crítica da obra de Clarice Lispector: “Constelação Clarice”, sob Curadoria de Eucanaâ Ferraz e Verônica Sitgger, quando escreve sobre aspectos do romance (?) “Perto do coração selvagem”. A questão de pensar a dinâmica de uma Casa, lugar onde coexiste experiência de felicidade e alegria somadas a angústias , desencontros e infernos familiares. Escreve Vilma:

”Clarice afirma ser impossível explicar esses desdobramentos e desvios, porque aos poucos ela se afastava ‘daquela zona onde as coisas têm forma fixa e arestas, onde tudo tem um nome sólido e imutável…’ A experiência analítica transita pelo universo da desconstrução de uma maneira (aparentemente sólida de ser) oferecendo questões relativas à liberdade de ser e uma nova organização mental. Clarice persegue essa intrigante questão em todos os seus escritos, e sinto que auxilia os analistas a observarem mais profundamente essa infinita urgência de ser mais verdadeiro consigo mesmo, tanto o analisando como ele próprio.”

Enfim, Vilma apreende ricamente a experiência emocional transcrita na “literatura-clínica” clariciana, termo que me toca profundamente e que estou convencido que a literatura é uma forma de viver e sobreviver ás nossas questões existenciais.

Cito para ficar por aqui hoje, a bela sacação de Vilma, imbuída na experiência de sentir:

“Isto significa que objetos, acontecimentos e, depois veremos, seres não são apenas os que podem ser observados de fora, mas também aqueles encobertos, só atingidos e percebidos pelo observador uma vez filtrados pela subjetividade, algumas vezes modulados pelo lugar que ocupam na familia , ou na sociedade. Ao mesmo tempo vêm enredados pelas pulsões, fantasias e recordações que condicionam nossa forma de compreensão. Na maioria das vezes , as coisas não são transparentes, quase não são voz, antes da voz ainda, (são), fôlegos”.

In “Todas as Crônicas”, Editora Rocco, pag 346.

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