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Envelhecer é uma arte
Envelhecer é uma arte

Já é novembro. Quem você quer ver no Natal?

Geralmente, as famílias reúnem-se em torno de pessoas idosas. Elas são, em geral, o elo de união. O encontro familiar ocorre de maneira muito diversa, conforme a diversidade cultural das famílias e das relações e, ao longo das fases do ciclo de vida, vai mudando. Sejamos maduros com os desafios dos relacionamentos humanos

Juliana Gai

13/11/2022 5h00

Atualizada 11/11/2022 16h28

Foto: Nicole Michalou/Pexels/Divulgação

Olá, leitores. Novembro chegou.

Com ele veio a campanha do Novembro Azul e, como profissionais de saúde, estamos trabalhando pelo diagnóstico precoce do câncer de próstata, estimulando os homens a buscarem exames preventivos. Mas novembro não é só isto, com ele também chegou a hora de planejar as festas de final de ano, comprar passagens, reservar hotéis, consultar a família sobre quais são os planos, onde irão encontrar-se, enfim… toda aquela confusão que acontece todos os anos e já inspirou o cinema a produzir inúmeras histórias, desde as mais engraçadas até as mais dramáticas.

Alguns destes filmes foram tão marcantes que atravessaram gerações, como “A felicidade não se compra”, de Frank Kapra, onde um homem vê, em flashbacks, situações em que sua presença foi importante, de modo a recuperar o descrédito em si mesmo e na vida; “Esqueceram de mim”, que levou ao estrelato Macaulay Culkin, é um clássico de comédia que agradou todas as idades, fazendo-nos pensar sobre a responsabilidade e a culpa maternas de uma maneira bem leve e divertida; “Simplesmente amor”, do sensível Richard Curtis, narra a vida real em situações com as quais todos nós nos identificamos em algum momento, sempre nadando entre obrigações consigo e com o outro, sentimentos, escolhas e interesses.

O cinema é o reflexo da vida. A arte é um reflexo da humanidade. Realmente, todo final de ano, a gente percebe que aprendeu alguma lição importante, nem que seja, sobrevivência.

Então, todo final de ano, além de rever o que aprendemos, seguimos para o desafio de rever as pessoas associadas à nossa origem ou, se formos casados, também, à origem do nosso companheiro: os familiares. Este assunto é tão cercado de tabu quanto o tema sobre o qual escrevi semana passada. Ninguém gosta de falar sobre isto. Entretanto, como gosto de falar sobre sinceridade, lá vou eu.

Geralmente, as famílias reúnem-se em torno de pessoas idosas. Elas são, em geral, o elo de união. Quando os pais idosos falecem, alguns irmãos podem deixar de se ver anualmente e espaçar os encontros. Talvez alguns primos percam o contato uns com os outros. Talvez não faça mais sentido estar todo mundo presente no Natal (mesmo que só de corpo presente em alguns casos).

As festas de final de ano podem ser até vistas como uma metáfora do envelhecimento. Não há como fugir, encontraremos coisas boas e ruins ao longo da vivência, teremos de lidar com isto da melhor forma possível, e não nos resta outra alternativa a não ser acreditar que tem algum sentido nisso. Algumas situações podem nos fazer rir para sempre, ao serem lembradas, sucessivamente, todos os anos. Como a criança que vomitou em cima do peru de Natal ou as gracinhas que alguém alcoolizado aprontou. Eu lembro que houve um ano em que um dos meus tios foi buscar minha avó em outro bairro da cidade, mas deixou-a esquecida, telefonando e reclamando. Meu tio foi dado como desaparecido e até a polícia foi comunicada, mas, então, uma das crianças o encontrou na garagem, dormindo no carro.

O encontro familiar ocorre de maneira muito diversa, conforme a diversidade cultural das famílias e das relações e, ao longo das fases do ciclo de vida, vai mudando. Eu sinto saudades da minha infância, porque estes encontros representavam mais brincadeiras com os primos do que exercício de gerenciamento de relações humanas. Sou grata por isto, porque significa que, com certeza, fui poupada pelos adultos a minha volta.

Claro que há pessoas que gostamos de rever no Natal. São as que fazem diferença positiva para as nossas vidas, podendo ser amigos, não só familiares. Há, ainda, pessoas que nós temos de ver. São as que já fizeram diferença em algum momento das nossas vidas, para bem ou para algum aprendizado, e com as quais temos algum laço impossível de romper. Pode até ser o ex-marido ou ex-esposa, quando há filhos em comum. Há, também, aquelas que ver ou não ver é indiferente, mas acabamos esbarrando por aí em alguma festa. E há pessoas que, se a gente pudesse escolher, não veríamos nunca mais, porque fazem (ou fizeram) diferença negativa nas nossas vidas. São aquelas que só sabem nos empurrar para baixo — as pessoas tóxicas, como são chamadas hoje em dia.

As pessoas idosas ficam muito chateadas quando seus filhos não são amigos. Mas, como todos somos seres humanos, com qualidades e defeitos, é possível sim que sejamos mais amigos de alguém com quem não temos laços sanguíneos do que do nosso irmão. É normal. Amizade é questão de afinidade e isto não tem nada a ver com laços de sangue. Mas, sendo importante para os pais, os irmãos costumam tentar manter alguma harmonia gentil para fazer os idosos felizes. Para algumas famílias, pode ser um travessia espinhosa tolerar os eventos de final de ano. Fato.

Rui Barbosa foi, na minha opinião, a primeira pessoa que falou sobre idadismo, anunciando que cafajestes também envelhecem e desconstruindo o estereótipo de que toda pessoa idosa é “gente boa”, “um anjo”, “uma pessoa que merece o máximo de amor, atenção e cuidado”. Estereótipo bem idadista, não é? Na verdade, não nos cabe julgar se a pessoa merece ou não o nosso amor, mas cabe a nós tentarmos nos preservar de um esforço antinatural de amar quem nos fez mal.

Eu acho um absurdo quando obrigamos crianças a ficar paparicando familiares só porque são mais velhos. Devemos ensiná-las a ser educadas e basta. As relações precisam de mão dupla, senão criaremos uma sociedade que continuará a perpetuar valores de submissão, especialmente para as meninas. Elas vão tolerar relacionamentos abusivos no futuro, provavelmente. Então, agora, vamos imaginar como é amar um pai ou mãe que não nos amou. Talvez possamos oferecer cuidado gentil, não amor. Não temos de julgar os filhos das pessoas idosas jamais.

O Natal, como valor cristão, acaba, às vezes, perdendo um pouco a razão de ser, tamanhas são as compras, as ceias, as festas, as bebidas, os presentes, as viagens, os passeios, os lugares, as pessoas… mas, se olharmos para fora da caixa, pensando não só como a data em que o comércio mais fatura no ano, encontraremos certa razão em determinados exageros. Como toda compulsão, deve advir da necessidade de disfarçar os momentos introspectivos em que o ser humano vai, inevitavelmente, encarar os fantasmas familiares e pode sofrer. O marketing sabe usar bem este gatilho mental.

Bom, já é novembro, e não teremos mesmo como escapar do Natal. Então, sejamos maduros com os desafios dos relacionamentos humanos. Vamos manter a elegância. Vamos tentar nos aproximar dos valores éticos e morais que deveriam, pelo menos em tese, reger qualquer sociedade, independente de religião. Teremos de respirar fundo muitas vezes. As festas de Natal podem ser como metáfora do ano que passou. Comemorar as vitórias e nos esforçar para aprender alguma coisa com o que se perdeu, nem que seja algo sobre sobrevivência.

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