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Torcida

Como nascem as perigosas alianças entre as torcidas organizadas no Brasil

Quando grupos de torcedores trocam socos, pontapés, tiros e pauladas em esquinas das cidades, eles estão repetindo uma prática milenar

Redação Jornal de Brasília

23/08/2022 9h58

Foto: Marcello Zambrana

Quando grupos de torcedores trocam socos, pontapés, tiros e pauladas em esquinas das cidades, ao redor ou até mesmo dentro dos estádios, eles estão repetindo uma prática milenar. A de se agrupar, tal qual na idade da pedra polida (8 mil anos a.C a 4 mil anos a.C), para se proteger de inimigos que podem atacar seus núcleos urbanos recém-formados.

Nos tempos atuais, o perigo real é ilusório. Ele apenas veste outra camisa. A do clube rival. Esta diferença, para tais grupos, acaba sendo pretexto para extravasar frustrações vindas de outras áreas: desemprego, falta de perspectivas, da busca de uma identidade. Neste cenário, a efetivação de alianças se tornou uma necessidade para essas torcidas organizadas de futebol, que formam verdadeiras gangues.

As uniões são acertadas originalmente como uma maneira de preservação e proteção durante as viagens para outros Estados e cidades. Elas se transformaram em “ligações perigosas” no futebol, nas quais a violência geralmente é preponderante. No futebol brasileiro, formou-se uma rede “diplomática” entre as torcidas, conta o presidente da Anatorg (Associação Nacional das Torcidas Organizadas do Brasil), Luiz Cláudio do Carmo do Espírito Santo, o Claudinho.

“A origem destas rivalidades e alianças vem do início da década de 70, quando as organizadas começaram a ganhar mais destaque. O que motivou foram as próprias rivalidades regionais. A partir delas, começaram a surgir aliados em outros Estados”, explica.

Claudinho diz que essas alianças se formam muitas vezes por acaso, sem uma lógica específica. São decorrentes de um fato isolado. Por exemplo, pode ocorrer porque um membro de torcida ajudou outro de outro clube durante uma viagem, por uma agradável conversa em um bar ou por uma gentileza durante uma partida. As lideranças são informadas e passam a fazer alianças

“Essas situações casuais, vindas de um auxílio ou de uma atitude diplomática favorável acaba se institucionalizando. A aliança surge de uma relação pessoal e com o tempo acaba se tornando institucional entre as torcidas. Algumas são amizades bem antigas, outras vão se moldando de acordo com o momento”, observa. Em comum, estão sempre preparadas para as brigas e uma defende a outra. Elas se juntam contra uma terceira facção, de times adversários dentro ou fora dos Estados.

SUPORTE EM VIAGENS

Um exemplo clássico é a união entre as torcidas do Vasco e do Palmeiras. A ligação mais forte diz respeito a duas torcidas organizadas dos clubes: a vascaína Força Jovem e a palmeirense Mancha Alviverde. “Nos anos 80, em razão de um jogo entre Palmeiras e Flamengo, a torcida palmeirense precisou de um auxílio em determinada situação. Membros da Força Jovem se ofereceram para ajudar e ali se iniciou uma amizade pessoal de seus seguidores que depois se transferiu para a coletividade”, conta Claudinho que, entre 2008 e 2010, presidiu a Força Jovem.

Em muitos casos, porém, Claudinho afirma que a primeira identificação é acrescida de outro motivo Decorre do grau de rejeição entre as torcidas dos clubes, em função da história de cada uma. “Na Bahia, por exemplo, o Bahia costuma ter uma proximidade maior com o Vasco, o que facilitou a união das organizadas. E o Vitória tem maior apreço pelo Flamengo. As relações vão sendo criadas desta maneira e se espalham por outros clubes, formando uma rede nacional de afinidades”, comenta.

Essa afinidade também se dá na hora das brigas. Reforçadas por essas irmandades, as gangues de unem contra torcedores rivais, de modo que jogos por vezes sem risco, acabam tendo enfrentamento de torcidas, quebra-pau e até mortes.

A relação das torcidas tem sido motivada, acima de tudo, por uma necessidade prática para as viagens. Churrascos de confraternização são comuns, assim como acompanhamento até o estádio, auxílio no transporte e contingentes de apoio em caso de emboscadas e confrontos. Os locais também oferecem guarita aos visitantes amigos, na certeza de avenida de duas mãos quando as partidas forem no Estado do parceiro. E assim, essas torcidas vão se entrelaçando contra outras também unidas.

Claudinho afirma que, em geral, as brigas não são marcadas por antecipação. “Elas costumam acontecer de repente. Muitas vezes há a presença de torcedores de outras organizadas porque eles estão lá justamente para dar suporte aos aliados”, diz.

Segundo ele, foi o que aconteceu, por exemplo, com torcedores do Palmeiras, que ajudaram a Força Jovem do Vasco em uma recente briga contra torcedores da Ponte Preta, em Campinas. Esses torcedores estão sempre prontos para brigar. No fim de semana, houve confusão dentro da própria torcida do Grêmio na Arena, em jogo diante do Cruzeiro. Em Campinas ainda, seguidores de Santos e São Paulo se enfrentaram em um posto. As duas equipes fizeram clássico a quilômetros de distância dali, na Vila Belmiro, em Santos.

Em nota enviada ao Estadão, a Secretaria da Segurança Pública do Estado de São Paulo ressalta que o acompanhamento da movimentação das organizadas e de eventuais aliadas está incluído no trabalho de prevenção e contenção da violência. “A Polícia Militar intensifica o policiamento nos estádios e em seus entornos antes e após cada partida. Do mesmo modo, ocorre a intensificação do policiamento nas adjacências das sedes das torcidas organizadas, nas estações de metrô, de trem, terminais de ônibus e locais em que podem ocorrer encontros de torcidas. Cada batalhão, nos dias de jogos, também reforça o patrulhamento em bares e afins, onde tradicionalmente há aglomerações de torcedores”, observa a entidade.

UNIVERSO PRÓPRIO

Na visão do promotor Arthur Lemos, do Ministério Público do Estado de São Paulo, tais alianças não mudam a visão das autoridades em relação às organizadas do futebol. “Essas alianças podem ocorrer normalmente, fazem parte da relação das torcidas, mas desde que não desvirtuem o propósito de integração, partindo para atos de violência. Se isso ocorrer, se tornam associações criminosas para fins ilícitos e, neste caso, o fortalecimento das associações muda de perspectiva e se torna um fortalecimento da violência, que deve ser prevenida, combatida e punida no rigor da lei.”

O professor Felipe Tavares Lopes, de Comunicação Social na Universidade de Sorocaba e especialista em assuntos ligados às organizadas, também aponta uma ausência de lógica nestas relações, tomando como base os critérios dos torcedores comuns. As organizadas têm os seus próprios critérios.

“Além dessas afinidades entre clubes, as relações ocorrem em função de uma rede de amizades própria, fazendo parte de um universo autônomo das organizadas. Elas buscam uma rede de proteção, apoio logístico nas viagens, segurança e apoio em algum confronto. Vale nestes casos a ideia de que o amigo do amigo é meu amigo”, analisa.

Como exemplo de união que não segue a linha das rivalidades clubísticas, Lopes cita a existente entre a Torcida Independente, do São Paulo, e a Torcida Jovem, do Flamengo. Em tese, as torcidas do Flamengo deveriam ter afinidade maior com as do Corinthians, por se tratarem dos dois clubes mais populares do Brasil.

Outra aliança peculiar está na inserção da Galoucura, do Atlético-MG, no elo entre a Força Jovem, do Vasco, e a Mancha Alviverde, do Palmeiras. “Pela lógica, a afinidade maior da Mancha deveria ser com organizadas do Cruzeiro, já que tanto Palmeiras quanto Cruzeiro levavam o nome de Palestra Itália. Mas esse tipo de argumento nem sempre ocorre no futebol”, destaca Lopes, membro do conselho consultivo da Anatorg.

Esse contexto leva, inclusive, a inimizades entre torcedores de um mesmo clube. Mas de organizadas diferentes, conforme lembra Claudinho. “Esses rachas existem e geralmente são por questões geográficas, em que torcedores de tal bairro próximo à organizada se sentem com mais direitos. Também há disputas em relação ao tamanho e à representatividade de cada torcida para o clube, sobre quem é mais forte, quem traz mais material de apoio e por aí afora”, afirma.

MINORIA VIOLENTA

Nos tempos em que era presidente da Força Jovem, Claudinho diz ter conhecido de perto a gênese do torcedor violento. “Nas torcidas organizadas, vários estudos mostram que os torcedores violentos são uma minoria de cerca de 5%. Acontece que são eles que causam os estragos e fazem mais barulho. Como presidente, eu procurei ter essa consciência, buscando mesclar a inteligência com a força na administração. Tentava compreender as origens de cada um, mas, por outro lado, quando havia necessidade, tinha de manter o pulso firme, punindo casos graves de acordo com o estatuto”, afirma.

No artigo Práticas de violência e mortes de torcedores no futebol brasileiro, publicado na revista da USP, de 2013, o sociólogo Maurício Murad, da UERJ, demonstra que, mesmo sendo minorias nas organizadas, os torcedores violentos não deixam de representar um grande perigo. “As práticas de violência em nosso futebol e as mortes de torcedores são operadas por minorias, entre 5% e 7% das torcidas organizadas, de acordo com as nossas pesquisas (UERJ/Universo, 2013), levadas a efeito desde maio de 1990. Minorias, mas perigosas e preocupantes, porque são armadas, treinadas e organizadas para o confronto violento. Minorias que se criam e crescem, contaminando grupos de ‘torcedores periféricos’ – isto é, aqueles que ficam à sua volta nos estádios, nas entradas e saídas dos mesmos”, ressalta.

O promotor Lemos, do MP-SP, também afirma que há atenção especial para a rivalidade entre as organizadas de um mesmo clube. Mas concorda que tais entidades não podem ser vistas apenas como violentas. “Existem fases de maior ou menor violência. Há torcidas organizadas que duelam internamente, tendo ocorrido até homicídios neste tipo de conflito. É preciso ter um sistema de catalogação muito preciso, o que é difícil. Mas as organizadas também se dedicam a atuar em causas positivas, como a cultura, o carnaval. A violência não é o propósito, mas acaba ocorrendo. Considero que os torcedores violentos não são a maioria.”

A polícia tem opinião similar ao do MP. “A PM individualiza cada conduta de torcedor e não faz generalizações de torcidas. É a regra. Periodicamente, a instituição se reúne com lideranças de torcidas organizadas de modo a orientá-las sobre ações preventivas e regras de segurança”, informa.

Em sua atuação como presidente da Anatorg, Claudinho diz que pretende passar a visão de que as torcidas organizadas não são as causas da violência ligada ao futebol. Segundo ele, elas acabam sendo depositárias de questões que dizem respeito a toda a sociedade. “A violência vem de fora para dentro da torcida. É uma questão cultural e educacional da sociedade brasileira. Os torcedores violentos acabam extravasando. Cada motivo banal é uma afronta. Para eles, o adversário acaba sendo visto como um inimigo. É algo irracional, porque muitas vezes todos eles são jovens, com problemas e origens similares e nem se conhecem. Cada um vê o desconhecido, que na verdade é parecido com ele, como um inimigo.”

Claudinho é um dos que consideram que as organizadas têm importante função social. E luta para que isso se espalhe e mude o jeito como as pessoas olham para as torcidas. Ele enfatiza que os membros da Anatorg são das mais variadas torcidas. “O André Bodão (ex-presidente da Torcida Força Jovem do Flamengo) é diretor regional da Anatorg, assim como outros representantes de torcidas em várias regiões. Nos damos bem, participamos de reuniões juntos e lutamos por uma causa em comum, que é mostrar que as organizadas podem contribuir com a sociedade”, exemplifica.

Estadão Conteúdo

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