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Saúde

Falta de especialização em pele negra dificulta diagnósticos no Brasil

No Brasil, onde 56% das pessoas se declaram pretas ou pardas, a SBD (Sociedade Brasileira de Dermatologia) não tem nada semelhante.

FolhaPress

18/11/2021 13h30

Foto: Agência Brasil

Priscila Camazano e Wesley Faraó Klimpel

O número reduzido de dermatologistas negros e a falta de especialização em pele negra no Brasil são vistos como obstáculos para o diagnóstico de doenças. Profissionais que atendem essa parcela da população costumam ser autodidatas e se especializam com a leitura de artigos científicos internacionais e com a prática diária.

Considerada uma referência no país quando se fala em médicos especializados em pele negra, Katleen da Cruz Conceição, 50, por muito tempo precisou testar em si mesma procedimentos, já que faltavam exemplos e orientações.
Quando começou a trabalhar em um ambulatório, percebeu que chegavam até ela muitos pacientes negros -um deles, ela lembra, contou que os dermatologistas brancos diziam que ela que saberia cuidar deles, por ser negra. “Naquele ano, vários médicos estavam indo para um congresso nos EUA. [Pensei] eu vou para esse congresso, porque estou sentindo que lá vou aprender sobre pele negra”, afirma.

E assim foi: no evento, encontrou uma sociedade de dermatologistas que estudam a pele negra. Esse grupo, ao qual ela se associou, foi fundado em 2004 -nos EUA, os afro-americanos correspondem a 13,4% da população. No Brasil, onde 56% das pessoas se declaram pretas ou pardas, a SBD (Sociedade Brasileira de Dermatologia) não tem nada semelhante.

A SBD diz, em nota, que promove atividades em congressos e simpósios para abordar patologias mais específicas entre pessoas com pele negra e pigmentada. Descobrir esses médicos nos EUA despertou em Conceição o desejo de se dedicar à especialização, o que a fez comprar no exterior todos os livros disponíveis sobre o tema.

Há oito anos, ela foi chamada para comandar o ambulatório de pele negra do Hospital Geral da Santa Casa de Misericórdia do Rio de Janeiro. Lá criou um programa de estágio supervisionado de seis meses em que um estudante atende os pacientes. Ana Carolina Galvão dos Santos de Araujo, 27, foi a primeira participante.

“Eu não sabia direito tratar especificamente a pele negra e as diferenças de apresentação clínica, então achei que seria interessante ir para lá”, conta Araujo. No programa, ela deveria desenvolver uma pesquisa relacionada a esse grupo e isso a interessou, já que são poucos os artigos científicos disponíveis no país.

Segundo Araujo, durante a graduação, nunca foi dada ênfase na análise clínica da pele negra. “Na universidade, eu não tive nada específico, mas o que acontece também é que, quando se aprende dermatologia, não se aprende tudo, porque é uma área muito ampla.”

Um estudo de 2019 no periódico Jama Dermatology mostrou que pacientes negros tinham uma maior satisfação quando eram examinados por dermatologistas negros, principalmente em relação às orientações de cuidado de pele e cabelo.

Os participantes, 18 mulheres e um homem, apontaram também que nas clínicas especializadas se sentiam mais bem atendidos porque os profissionais os ouviam e os educavam sobre sua condição de pele. Ter empatia com o paciente negro e entender as peculiaridades da pele pigmentada são fundamentais, destaca a dermatologista Carolina Alice Silva do Nascimento, 36, de Salvador.

“O olhar para a pele negra foi algo para mim muito natural, porque fui paciente antes de ser dermatologista. Passei por profissionais muito bons, mas, por mais que tecnicamente fossem excelentes, o olhar para as patologias e nuances que uma pele pigmentada precisa às vezes faltava”, diz.

Segundo Nascimento, a empatia parte, por exemplo, de o profissional entender que o cabelo crespo e cacheado necessita de um grau a mais de hidratação e que, quando a paciente relata que está usando creme [para o cabelo] e ele está dando espinha nas costas, o médico não pode simplesmente dizer para deixar de usar o produto. “Ela não pode parar de usar porque o creme é o que está hidratando o cabelo, então você tem que adaptar. Eu acho que o fato de ser preta e ter a vivência pessoal faz com que desde o início o meu olhar já seja diferente.”

Outra questão que envolve saúde e identidade é a alopecia, ou a queda acentuada de cabelo. Dependendo do dermatologista, a indicação é que o paciente tire as tranças, enquanto que, aliando tratamento e tranças mais finas, é possível reverter o problema.

Carolina lembra também que há um senso comum de que a pele pigmentada, por ter mais melanina, não precisa de protetor solar. Não é verdade. A proteção é necessária e evita o melanoma, um tipo de câncer que, ressalta a médica, é o mais grave de todos. “Nos pacientes que têm a pele mais pigmentada, [o melanoma] tem características diferentes. Ele aparece mais em pé e mão e, se o médico não examinar essas partes, pode deixar passar.”

Essa falha na avaliação é um dos motivos que fazem com que pessoas negras, embora com menor probabilidade de ter câncer de pele -o maior órgão do corpo humano-, possuam mais chance de morrer por causa da doença, de acordo com um estudo de 2016 publicado no NCBI (Centro Nacional para Informação sobre Biotecnologia, em inglês).

Na avaliação dos pesquisadores, isso se deve à falta de conscientização, ao diagnóstico em estágio mais avançado e às barreiras socioeconômicas que dificultam o acesso dos negros ao atendimento. A dermatologista Eliana Lopes Chagas, 50, que atende no Rio, aponta outras doenças mais comuns em negros. “O melasma é o grande campeão, e a segunda é a dermatose papulosa nigra, que são aquelas bolinhas escuras [no rosto]”, afirma.

Segundo ela, toda e qualquer discromia (alteração de coloração) chama mais atenção no negro do que no branco. O queloide (marca saliente de cicatriz), a acne e a capacidade de manchar também são comuns. “A maioria das doenças se expressam de maneira diferente na pele negra: o que é vermelho em uma pele clara na negra pode ser só brilhante, então o médico precisa ter uma experiência maior para fazer um diagnóstico completo e preciso.”

Chagas trabalhou em muitas comunidades carentes –onde a maioria dos pacientes eram negros– e, nos atendimentos, percebia que os problemas eram sempre os mesmos: discromias e queixas de manchas. Ela lembra que 28 anos atrás, quando estava na faculdade, os livros tratavam do tema sempre de forma excludente. “Eles falavam do que era mais comum na pele negra em algumas doenças. Aí você que lute para pegar aquela referência”, afirma a médica, que foi se especializando na tentativa e erro e na leitura de material de fora do Brasil.

Atualmente, porém, ela comemora, com as redes sociais e o maior acesso à internet, é possível encontrar mais dados e profissionais voltados à pele negra. Chagas, inclusive, percebeu um aumento de pacientes negros em seu consultório após criar um perfil no Instagram. “As pessoas vão atrás de mim por eu ser negra, acreditando que eu saiba lidar com os problemas pertinentes a eles e, por um acaso, até sei realmente”, afirma.

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