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Política & Poder

Poços de água do governo para Nordeste têm indícios de sobrepreço de R$ 131 milhões

‘Estadão’ mostrou como a ‘força-tarefa das águas’ federal entregou poços sem bombeamento

Redação Jornal de Brasília

17/08/2022 6h28

Foto: Divulgação

A construção de poços pelo governo de Jair Bolsonaro (PL) tem indícios de sobrepreço de pelo menos R$ 131 milhões. O valor representa 11% do total de R$ 1,2 bilhão previsto pelo governo para levar água a famílias pobres do Nordeste. Como revelou o Estadão, as licitações são precárias e inúmeros poços já perfurados estão lacrados. As obras pararam na metade e bombas para a retirada de água não foram instaladas.

A suspeita recai sobre um pregão feito em março deste ano pela Fundação Nacional de Saúde (Funasa), órgão entregue por Bolsonaro para o Centrão e vinculado ao Ministério da Saúde. Com os recursos, seria possível pagar uma parcela do Auxílio Brasil de R$ 600 para 218 mil pessoas.

O governo reservou R$ 498 milhões para empresas fazerem testes de qualidade da água e a instalação de 5.802 poços ociosos em todos os nove Estados do Nordeste e no norte de Minas. As vencedoras ofereceram R$ 454,6 milhões, dos quais R$ 69 milhões foram empenhados no início de julho. O valor ainda não foi pago e as intervenções não começaram.

Uma análise preliminar de técnicos da Controladoria-Geral da União (CGU) apontou indícios de sobrepreço e detectou inconsistências nos quantitativos dos serviços, inexistência de justificativas técnicas para itens exigidos, deficiência nas pesquisas de preços de mercado e “superficialidade” em especificações.

A pesquisa de mercado sobre um dos componentes do sistema de ligação dos poços licitados indicou valor médio de R$ 850. A Funasa quis pagar R$ 1,2 mil. Ao fim, uma diferença de R$ 13 milhões a mais, somente em um item. Em outro, apurações oficiais apontaram falta de justificativa, por exemplo, para o uso de tubos de PVC de 100 metros, enquanto que em outra licitação semelhante houve a utilização de tubos de 7 metros. A diferença do item poderia custar R$ 24 milhões a mais.

O edital do pregão não aponta a localização dos poços que devem ser perfurados nem a situação de cada um deles. Apenas diz, genericamente, que será necessário colocar quase 6 mil poços em funcionamento. Cada um deles teria sido indicado à Funasa pelas prefeituras.

Os terrenos dos poços também não são detalhados. Segundo técnicos, a especificação é elementar nesse ramo. Influencia, por exemplo, no tamanho das bombas e dos tubos, informações fundamentais para estimar custos com mão de obra e materiais. Poços perfurados em solos sedimentares, que predominam no Maranhão, chegam a ter 150 metros de profundidade. Já os poços situados nos chamados terrenos cristalinos, comuns no semiárido nordestino, têm cerca de 60 metros, em média. A desconsideração por esses dados pode, de acordo com técnicos, causar impacto no preço final contratado e afastar empresas da concorrência.

O edital também agregou dois serviços que técnicos consideram distintos e deveriam ser feitos por empresas diferentes para aumentar a concorrência e diminuir os preços. As vencedoras dos lotes fariam tanto o teste da qualidade da água quanto o teste de bombeamento para verificação de vazões e a instalação das bombas propriamente dita. A literatura técnica da construção de poços não exige que uma coisa seja realizada imediatamente depois da outra, nem pela mesma empresa.

A Funasa, nesta licitação, contemplou Alagoas, Bahia, Ceará, Sergipe, Maranhão, Paraíba, Pernambuco, Piauí, Rio Grande do Norte e Minas Gerais – Miguel Marques, presidente da Funasa, é mineiro de Contagem e foi indicado para o posto pelo PSD, partido ao qual Bolsonaro entregou o controle do órgão.

A construção dos poços, em uma campanha batizada de “força-tarefa das águas”, foi licitada por meio de pregão na modalidade de registro de preços – no qual empresas se comprometem a entregar um produto ou serviço por determinado valor no futuro.

Participaram do lançamento do projeto, em uma cerimônia em Quixadá (CE), Bolsonaro, o ministro-chefe da Casa Civil, Ciro Nogueira, e os à época ministros João Roma (Cidadania) e Rogério Marinho (Desenvolvimento Regional).

Ciro Nogueira usa a iniciativa em propagandas. Nas redes sociais, aparece lavando a cabeça e bebendo a água que sai de um poço. Ele costuma dizer que a “força-tarefa” tem o objetivo de levar água a comunidades rurais e acabar com a “máfia do caminhão-pipa”.

As obras também foram citadas no discurso do presidente durante o lançamento de sua candidatura ao Palácio do Planalto, em julho, no Rio. “Água em grande parte do Nordeste é uma realidade”, disse ele. “Também o nosso Exército, com a Codevasf, fura dezenas de poços todos os meses, levando dignidade a essas pessoas. Eu estou mostrando o que nós fizemos”, declarou.

A coordenação é feita pela Funasa e participam também outros órgãos controlados por políticos do Centrão e marcados por escândalos, como a Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e do Parnaíba (Codevasf) e o Departamento Nacional de Obras Contra as Secas (Dnocs). Essas repartições têm servido para dar vazão ao orçamento secreto e para contratos suspeitos, como os de compra de caminhões de lixo, como mostrou o Estadão.

A reportagem percorreu regiões atingidas pela falta de água no semiárido. “Eles abriram (o poço), mas não encanaram a água para nós. A gente fica triste, porque tem água doce perto, mas não pode usar”, disse Valmira Araújo, moradora da zona rural de Oeiras.

Em nota, a Funasa afirmou que não emitiu nenhuma ordem de serviço e ainda não pagou nada para as empresas. Destacou também que houve lisura e transparência no processo de seleção aberto para “concluir obras inacabadas realizadas por diversos órgãos estaduais, municipais e federais, buscando dar funcionalidade e acesso a água à população mais carente”. O órgão ainda acrescentou que não dará andamento aos serviços até que uma denúncia relacionada ao caso seja apreciada pelo Tribunal de Contas da União (TCU).

Estadão Conteúdo

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