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Política & Poder

‘Dama do tráfico’: entenda passo a passo do caso revelado pelo Estadão e as reações do governo

No começo deste mês, Luciane voltou a Brasília – desta vez com as despesas pagas pelo Ministério dos Direitos Humanos

Redação Jornal de Brasília

20/11/2023 17h54

Foto: Reprodução/ redes sociais

Ao longo da semana passada, as visitas da mulher de um chefe do Comando Vermelho no Estado do Amazonas ao Ministério da Justiça fizeram explodir o número de buscas sobre a pasta e a facção criminosa no mecanismo de busca Google. Dados parciais indicam que os termos “Ministério da Justiça” e “Comando Vermelho” terminarão o mês de novembro com o maior volume de buscas nos últimos cinco anos.

No rastro da revelação feita pelo Estadão, políticos do governo e da oposição divulgaram diversas versões falsas sobre o caso da “dama do tráfico amazonense”.

As visitas de Luciane Barbosa Farias, 37, ao Ministério da Justiça foram reveladas pelo Estadão na última segunda-feira, 13. Ela esteve em Brasília pelo menos três vezes: em março, em maio e em novembro. Na primeira visita, foi ao Congresso e, no Ministério da Justiça, encontrou-se com o Secretário de Assuntos Legislativos da Pasta, Elias Vaz. Em maio, esteve com o titular da Secretaria Nacional de Políticas Penais (Senappen) do MJ, Rafael Velasco Brandani.

A viagem de maio foi a mais movimentada para Luciane. Além do MJ, ela também foi recebida no Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania (MDHC) e no Conselho Nacional de Justiça (CNJ). No Congresso, tirou fotos com os deputados Guilherme Boulos (PSOL-SP), André Janones (Avante-MG) e Daiana Santos (PCdoB-RS)

No começo deste mês, Luciane voltou a Brasília – desta vez com as despesas pagas pelo Ministério dos Direitos Humanos, do ministro Silvio Almeida, conforme revelou o jornal O Globo. Ela participou do “4° Encontro Nacional dos comitês e mecanismos de prevenção e combate à tortura”, indicada pelo comitê local amazonense. Em nota, Sílvio Almeida ressaltou o fato de que seu gabinete não teve qualquer ingerência sobre a escolha de Luciane, e nem contato com ela. Diárias e passagens custaram aos cofres públicos R$ 5.909,07.

Condenada em segunda instância a dez anos de prisão por associação para o tráfico, lavagem de dinheiro e formação de organização criminosa, Luciane é casada desde 2012 com Clemilson dos Santos Farias, o “Tio Patinhas”. Considerado um dos criminosos mais temidos do Estado até sua prisão, em 11 de dezembro, Clemilson integrou o “Conselho” do CV no Amazonas, isto é, a cúpula que dirige os assuntos da facção, segundo relatório da Polícia Civil do Amazonas.

Após a divulgação do caso, Luciane passou a dizer nas redes sociais que estaria sendo “criminalizada” por ser casada com um presidiário. Não é verdade: segundo a denúncia do Ministério Público do Amazonas (MP-AM), aceita pelo Tribunal de Justiça do Estado, Luciane lavou dinheiro do marido, obtido por meio do tráfico. Por isso o MP-AM a caracteriza como “comparsa” de Tio Patinhas. “Ao tempo em que aparecia como esposa exemplar, era o ‘braço financeiro’ de Tio Patinhas. Exercia papel fundamental também, na ocultação de valores oriundos do narcotráfico, adquirindo veículos de luxo, imóveis e registrando ‘empresas laranjas'”, diz um trecho da denúncia.

Para a desembargadora Vânia Marques Marinho, que deu o voto para condenar Luciane, sua participação na facção é “inquestionável”. “Luciane Barbosa Farias era a responsável por acobertar a ilicitude do tráfico, tornando o numerário deste com personificação lícita, ao efetuar compra de veículos, apartamentos e até mesmo abrindo empreendimento. Logo, inquestionável é a participação da Apelada na organização criminosa ‘Comando Vermelho'”, escreveu ela.

Na segunda-feira, 13, após a publicação das reportagens do Estadão, o Ministério da Justiça admitiu os encontros e editou uma portaria com novas regras, mais rígidas, sobre visitas. As regras são assinadas pelo número 2 de Dino na pasta, o secretário-executivo Ricardo Cappelli. Convidados externos precisarão ser registrados com 48 horas de antecedência – incluindo seus CPFs.

Ainda na segunda-feira, o ministro Flávio Dino reagiu transferindo a responsabilidade para o Secretário de Assuntos Legislativos do Ministério, Elias Vaz. “Nunca recebi, em audiência no Ministério da Justiça, líder de facção criminosa, ou esposa, ou parente, ou vizinho”, disse ele numa postagem no X (antigo Twitter). “Sobre a audiência, em outro local, sem o meu conhecimento ou presença, vejam a história verdadeira no Twitter do Elias Vaz”, escreveu ele. Nenhuma reportagem do Estadão afirmou que ele se encontrou pessoalmente com Luciane – embora a sala de Elias Vaz no Ministério da Justiça fique no mesmo andar daquela de Flávio Dino.

No dia seguinte, reportagem do Estadão revelou recibos obtidos pela Polícia Civil do Amazonas que mostram pagamentos do “contador” do Comando Vermelho no Amazonas para a ONG “Instituto Liberdade do Amazonas”, presidida por Luciane, e para a advogada e ex-deputada pelo PSOL do Rio de Janeiro, Janira Rocha, responsável por levar Luciane ao ministério. Janira recebeu três pagamentos que somam R$ 23,6 mil dias antes da primeira reunião no MJ. Já a ONG teve as despesas de fevereiro, de R$ 22,5 mil, pagas pelo “contador” do CV.

Na quarta-feira, 15, outra reportagem do Estadão mostrou que o Ministério da Justiça forneceu uma informação inverídica por meio da assessoria de imprensa. Na primeira resposta ao jornal, a pasta afirmou que “não houve qualquer outro andamento do tema” após a reunião entre Luciane e o titular da Senappen, Rafael Velasco. No entanto, servidores da pasta trabalharam durante dois meses e meio para responder aos questionamentos da ONG Instituto Liberdade do Amazonas.

O Estadão também revelou que dois auxiliares do Ministério da Justiça, que participaram de reuniões com Luciane, descumprem a Lei de Conflitos de Interesses e não divulgam publicamente seus compromissos. O secretário nacional de Assuntos Legislativos, Elias Vaz, e o diretor de Inteligência Penitenciária, Sandro Abel Sousa Barradas, não divulgam suas agendas desde o início do ano, apesar de estarem obrigados por lei a publicá-las.

Já o secretário nacional de Políticas Penais (Senappen), Rafael Velasco Brandani, costuma publicar seus compromissos num sistema da Controladoria-Geral da União (CGU), mas o nome de Luciane Farias não está registrado na agenda.

O Ministério da Justiça afirmou, em relação a Elias Vaz, que a Secretaria de Assuntos Legislativos é uma pasta “nova” e que a não divulgação se deve a um problema operacional que está sendo corrigido. Vaz foi nomeado há quase 11 meses. Por sua vez, a Senappen, que responde por Velasco e Barradas, alegou que “algumas hipóteses são dispensadas de divulgação, incluindo aquelas cujo sigilo seja imprescindível à salvaguarda e à segurança da sociedade e do Estado”.

Estadão Conteúdo

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