UIRÁ MACHADO
SÃO PAULO, SP
O ministro Edson Fachin, do Supremo Tribunal Federal (STF), considera que o atual Código Civil nasceu velho em diversos aspectos. E por um motivo simples: ele começou a tramitar no Congresso Nacional em 1975 e só foi aprovado em 2002.
“Embora sancionado nos primeiros anos do século 21, [o código] reflete o pensamento jurídico cristalizado na década de 1970”, afirma Fachin, único ministro da atual composição STF com experiência como advogado na área e professor de direito civil.
Mas, para ele, olhar apenas para o código não diz tudo. Segundo o ministro, a legislação ganha vida pela aplicação prática realizada por juízes e pela interpretação teórica dos especialistas.
E não faltou tempo para isso: no dia 11 de janeiro, completaram-se 20 anos desde que o novo código passou a valer no país, substituindo o anterior, aprovado em 1916.
Em entrevista por escrito à Folha de S.Paulo, ele cita, entre outros exemplos, o caso da união estável entre casais homoafetivos. Embora o Código Civil não tenha tratado do assunto, decisão do STF liberou o casamento gay no Brasil.
PERGUNTA – Para alguns especialistas, o fato de o novo código ter ficado mais de duas décadas em discussão no Congresso fez com que ele já nascesse velho. O sr. concorda com essa visão?
EDSON FACHIN – O código de 1916 é produto do século 19, ainda que tenha entrado em vigor na segunda década do século 20. Já o código de 2002, embora sancionado nos primeiros anos do século 21, reflete o pensamento jurídico cristalizado na década de 1970.
O Código de 2002 buscou, numa mutação legislativa sem ruptura, adaptar o direito privado às transformações teóricas e práticas que ocorreram durante todo o século 20.
A tarefa tornou-se mais e mais complexa porque, durante a tramitação do projeto, entrou em vigor a nova Constituição da República em 1988. A Constituição chamou para si a fonte básica dos princípios e regras, ampliando sobremaneira o papel da atuação dos juízes. O código respondeu ao chamado, ao consagrar as cláusulas gerais, reforçando, de igual maneira, a tarefa dos julgadores.
É verdade, portanto, que o projeto que se tornou o Código Civil de 2002 já tramitava desde a década de 70, de modo que nasceu velho em diversos aspectos. Em face da nova Constituição, o código aportou dependente de um esforço hermenêutico para que se adequasse aos parâmetros constitucionais erigidos após 1988.
Emergiu daí o papel atuante do Poder Judiciário brasileiro, ao lado do esforço interpretativo da doutrina. Afinal, é na aplicação prática, captada pelo olhar crítico da doutrina, que o arcabouço teórico e legislativo ganha relevo.
P.- O Código Civil ainda dá conta da realidade atual ou precisa de mudanças?
EF- É preciso ter em conta que a legislação não esgota a tarefa do Direito. É na aplicação prática, realizada pelos juízes, diante do caso concreto; no esforço do olhar crítico do intérprete, que constrói a doutrina; que a legislação ganha vida.
Em publicação contemporânea à edição do Código Civil de 2002, afirmei que seria legítimo indagar “sobre os efeitos reais e possíveis de uma necessária hermenêutica construtiva das relações jurídicas na família, na propriedade e nos contratos para os velhos problemas enfrentados no país”.
Afirmei, ainda, que “a jurisprudência e a doutrina futuras dirão se terão sido capazes de informar relações contratuais mais equânimes, justas e razoáveis, num país vincado por desigualdades materiais e concretas que arrostam qualquer intenção legislativa”.
Passados 20 anos de vigência do ‘novo’ código, o Brasil continua sendo um país profundamente desigual. Logicamente, seria injusto tributar a origem das desigualdades à legislação. No entanto, se é verdade que as desigualdades persistem, também é verdade que desatamos alguns nós desde 2003.
P.- Poderia dar exemplos?
EF- A filiação socioafetiva e as relações de união estável, hetero ou homoafetivas, são realidade entre nós. Uma leitura calcada na boa-fé gera efeitos nos contratos e no trânsito jurídico deles decorrentes. A propriedade e a posse também podem ser exercidas em conformidade com valores constitucionais, quando se permite, por exemplo, a suspensão das ordens de despejo durante a pandemia, ou se reconhece a impenhorabilidade da pequena propriedade rural familiar.
Os grandes desafios enunciados em 2003, porém, persistem: superar a clivagem abissal entre a proclamação discursiva das boas intenções e a efetivação da experiência. Esse dilema, simploriamente reduzido ao fosso entre a teoria e a prática, convive diuturnamente na educação jurídica. Compreendê-lo corresponde a fazer de uma lei instrumento de cidadania.
P.- Que outros impactos a entrada em vigor do novo Código Civil teve na vida das pessoas?
EF- O Código Civil de 2002 trouxe diversas inovações que provocaram alterações na jurisprudência e, como não poderia deixar de ser, impactaram também a vida das pessoas. Numerosos são os exemplos desse impacto. Podemos citar alguns deles, que podem ser encontrados:
– na vedação de qualquer forma de discriminação entre os filhos, seja entre aqueles havidos dentro ou fora do casamento, seja entre os biológicos ou adotivos;
– no art. 1.581, que facilitou o trâmite do divórcio, ao permitir que seja realizado sem partilha prévia de bens, o que foi posteriormente aprofundado pela lei 11.441/2007, que permitiu o divórcio extrajudicial e, também, pela emenda constitucional 66, de 2010, que suprimiu o requisito de prévia separação judicial para fins de divórcio;
– na possibilidade de reconhecimento da identidade como livre expressão da personalidade e, consequentemente, na tutela jurídica da alteração do registro civil independentemente de realização de cirurgia de transgenitalização;
– na discussão sobre a possibilidade de penhora do bem de família do fiador em contratos de locação comercial;
– no debate sobre o reconhecimento da criptografia como ferramenta para a proteção à privacidade e à liberdade de expressão online.
As transformações não se esgotam nos citados exemplos e, para travessia que se abre, das décadas vindouras de vigência do código, nada mais justo que almejar seja o percurso mais democrático, sempre amparado nos princípios constitucionais, dentre os quais merece especial ênfase a dignidade da pessoa humana.
RAIO-X
Luiz Edson Fachin, 64
É ministro do Supremo Tribunal Federal desde 2015. Antes, atuou como advogado e foi professor titular de direito civil da Universidade Federal do Paraná. No mestrado e no doutorado, ambos pela PUC-SP (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo), estudou diferentes aspectos do direito civil.