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União Europeia relaxa regra que criava ‘guerra das linguiças’ no brexit

A liberação integra uma nova oferta do bloco para tentar pacificar a parte mais controversa do brexit, o Protocolo da Irlanda do Norte

FolhaPress

13/10/2021 15h27

Ana Estela de Sousa Pinto
BRUXELAS, BÉLGICA

No que depender da União Europeia, as linguiças produzidas na Grã-Bretanha poderão viajar sem entraves para a Irlanda do Norte. A liberação integra uma nova oferta do bloco para tentar pacificar a parte mais controversa do brexit, o chamado Protocolo da Irlanda do Norte.

O documento tenta evitar que o divórcio entre UE e Reino Unido abale a paz obtida em 1989 na Irlanda do Norte, após décadas de confrontos sangrentos entre norte-irlandeses unionistas –que querem continuar sendo britânicos– e os que querem se integrar à República da Irlanda. O problema é que o brexit retirou o Reino Unido do mercado comum europeu, e produtos que cruzam as fronteiras entre os antigos parceiros ficam sujeitos a aduana e inspeções sanitárias.

Como a Irlanda está na União Europeia e a Irlanda do Norte não, o divórcio exigiria criar uma “fronteira dura” na ilha irlandesa, o que poderia reanimar um conflito ainda latente entre os antigos rivais da Irlanda do Norte. A fórmula de compromisso entre as duas partes foi manter a Irlanda do Norte dentro do mercado único de bens do bloco europeu. A fiscalização passaria a ser feita na fronteira marítima entre a Grã-Bretanha (que inclui Inglaterra, Escócia e País de Gales) e a ilha irlandesa.

Apesar de ter assinado o acordo há dois anos, o premiê britânico, Boris Johnson, não as cumpriu, e mais de uma vez o Reino Unido ameaçou simplesmente ignorar os compromissos. Na última terça, o ministro britânico do brexit, David Frost, havia afirmado que seria necessário um novo protocolo, uma hipótese refutada pelo responsável pelas negociações pelo lado europeu, o vice-presidente da Comissão Europeia, Maros Sefcovic (pronuncia-se Márosh Sheftchovitch).

Apresentada nesta quarta, a nova oferta da UE flexibiliza várias partes do acordo, em troca de mais acesso a dados que permitam a fiscalização do que sai da Grã-Bretanha e entra na Irlanda do Norte. A proposta europeia tem quatro partes: 1) alimentos e regulação fitossanitária, 2) aduanas, 3) medicamentos e 4) participação norte-irlandesa nas decisões.

O primeiro item é o que traz alívio à guerra das linguiças. O alimento, assim como almôndegas , croquetes de frango ou outros integrantes da categoria “produto resfriado à base de carne”, só pode ser importado pela UE se estiver congelado.

Como a Irlanda do Norte passou a estar no mercado comum, o Reino Unido precisava fazer o mesmo com as linguiças que enviasse para lá. Regras fitossanitárias e inspeções congestionaram portos e deixaram prateleiras das lojas vazias, levando a UE a suspender duas vezes a implantação dessa parte do acordo desde dezembro do ano passado.

Agora, a Comissão Europeia pretende liberar de inspeções e burocracia cerca de 80% dos produtos alimentícios: “Um caminhão carregando 100 produtos diversos -verduras, ovos, leite, carne- precisará de apenas um certificado, em vez de 100”. A contrapartida é que as mercadorias tenham um rótulo que marque claramente que são destinados apenas ao Reino Unido, para evitar sua entrada indevida no mercado comum europeu sem cumprir as regras da UE.

Medida semelhante está sendo proposta para medicamentos: os laboratórios instalados na Grã-Bretanha poderão continuar fornecendo livremente para a Irlanda do Norte, desde que os produtos estejam claramente rotulados para evitar que cheguem ao mercado europeu.

As regras de aduana serão facilitadas para praticamente todas as mercadorias produzidas na Grã-Bretanha que se destinam apenas à Irlanda do Norte. Por exemplo, na remessa de autopeças da Inglaterra para uma empresa norte-irlandesa, a burocracia seria cortada pela metade. Para isso, é preciso que o Reino Unido cumpra a promessa de construir postos de controle e permitir acesso em tempo real a todos os elos da cadeia de produção, afirmou Sefcovic.

O último ponto é político: abrir espaço para que partes interessadas norte-irlandesa possam participar dos debates e negociações relativos ao protocolo. A ideia é dar assento ao governo nacional no conselho do grupo de trabalho e criar uma câmara de debate entre a Assembleia norte-irlandesa e a UE.

O plano apresentado nesta quarta não aborda o papel do Tribunal de Justiça da União Europeia (o Supremo do bloco), apontado até a semana passada como inaceitável por Frost. Pelo protocolo, a corte pode decidir sobre questões da legislação europeia na Irlanda do Norte, ou seja, em caso de desavenças com o Reino Unido sobre uma lei da UE, a decisão seria do TJUE. O bloco europeu quis deixar claro que suas medidas foram feitas para beneficiar a população da Irlanda do Norte e manter a estabilidade no país, e não para ceder às pressões do governo de Boris Johnson.

Após a divulgação da proposta, David Frost se declarou disposto a prosseguir com as conversas sem “linhas vermelhas” (cláusulas inegociáveis). Os dois ex-parceiros devem voltar à mesa de negociações nas próximas semanas. Segundo membros da comissão envolvidos no trabalho, a UE “espera pelo melhor, mas está se preparando para o pior” – se o Reino Unido se recusar a fechar um novo acordo ou romper unilateralmente o acordo, pode detonar uma sequência de ações judiciais ou mesmo uma guerra comercial.

Na terça (12), o clima ficou pesado entre os governos irlandês e britânico, após uma sequência de posts em rede social do ex-guru de Boris Johnson, Dominic Cummings. Segundo o ex-conselheiro, o premiê aceitou o protocolo em 2019 apenas para aumentar suas chances na eleição de dezembro. De acordo com Cummings, Boris “nunca teve uma ideia do que o acordo que ele assinou significava”.

Em resposta, o vice-primeiro-ministro irlandês, Leo Varadkar, afirmou que nenhum país deveria se arriscar a fazer acordos com o Reino Unido até que ele cumpra o que prometeu no Protocolo da Irlanda do Norte.
Segundo Varadkar, que era o primeiro-ministro da Irlanda em 2019, os comentários de Cummings indicam que o premiê britânico agiu de má-fé.

“Certamente a mensagem deve chegar a todos os países ao redor do mundo de que este é um governo britânico que não necessariamente cumpre sua palavra, e não necessariamente honra os acordos que faz”, disse ele à mídia irlandesa.

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