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Proibição do álcool no islã é fruto de leitura mais literal do Alcorão

A questão do álcool, como a do véu, foi interpretada de maneiras diferentes através do tempo e do espaço na lei islâmica, a chamada sharia

FolhaPress

18/11/2022 12h23

Foto: Divulgação

DIOGO BERCITO
WASHINGTON, EUA

Se o plano do Qatar era usar a Copa para seduzir o mundo, não está dando certo. Desde o anúncio de que esse país hospedaria o evento, não faltaram polêmicas –sobre o calor, a exploração dos trabalhadores imigrantes, a punição dos homossexuais e a repressão das mulheres. Falou-se sobre tudo, menos futebol.

O imbróglio da vez é a proibição da venda de cerveja nos estádios, anunciada pela Fifa na sexta-feira (18), dois dias antes da estreia do evento. O Qatar conseguiu, com isso, reabrir uma discussão antiga, que vai ferir ainda mais sua imagem: a questão do álcool no islã.

Dizer que o islã proíbe o álcool é redutivo demais. Essa religião, seguida por um quarto do mundo, é marcada por nuances. Não existe apenas um islã, e sim diversos islãs, no plural.

Basta recordar que um dos grandes poetas de língua árabe, Abu Nuwas, era conhecido –e celebrado– por seus poemas sobre os prazeres do vinho. São de Abu Nuwas, que viveu nos séculos 8 e 9 em Bagdá, os versos “pobre e maldito é o tempo em que sóbrio fico / mas quando trôpego pelo vinho torno-me rico”.

O islã surgiu no século 7 na península Arábica, com as revelações divinas recebidas pelo profeta Maomé. Seu texto sagrado é o Alcorão, equivalente à Bíblia dos cristãos. Como não há uma autoridade central correspondente ao Papa, essa religião monoteísta se transformou por meio de complexos debates teológicos.

A questão do álcool, como a do véu, foi interpretada de maneiras diferentes através do tempo e do espaço na lei islâmica, a chamada sharia. Em breves versos, o Alcorão condena a intoxicação, sem prever punições específicas. Uma das leituras possíveis é a de que pessoas inebriadas perdem a capacidade de pensar e não são capazes de cumprir suas obrigações religiosas.

Mesmo essas rápidas menções são tema de debate religioso. O termo que aparece no Alcorão é “khamr”. Estudiosos discutem o que a palavra em árabe significa. Alguns sugerem, por exemplo, que “khamr” se refere apenas ao fruto da fermentação da uva, como o vinho. Outros estendem o significado para abranger todo o tipo de álcool –incluindo a cerveja nos estádios da Copa do Mundo.

Essa variedade de interpretações ajuda a explicar como uma cultura pode ao mesmo tempo proibir e celebrar a bebida. As poesias de Abu Nuwas sobre o vinho fazem parte de um gênero à parte, o “khamriyyat”, dedicado à prazerosa intoxicação pelo álcool. Abu Nuwas, diga-se de passagem, também celebrava as relações homossexuais, hoje condenadas no Qatar.

Os países de cultura árabe e islâmica, ademais, produzem o famoso áraque. À base de uva e anis, essa bebida é parecida com o anisete. Misturado à água, o líquido fica branco e turvo como o leite. É um favorito em lugares como o Líbano.

Como no passado, os governos e populações do Oriente Médio hoje tratam o álcool de maneiras diferentes. Os países do Golfo, com leituras mais literais da religião, têm provavelmente as regras mais rígidas.

Não é crime beber no Qatar. O problema é ser encontrado bebendo ou bêbado em público. A monarquia, porém, dificulta o consumo até beirar a proibição. A autorização para vender álcool é rara e custosa, envolvendo uma longa burocracia. Hoje, a maior parte dos estabelecimentos qataris que comerciam cerveja são os hotéis. O público-alvo são os estrangeiros, tanto os que vivem no país quanto os turistas.

É tão difícil encontrar uma cerveja no país que forasteiros criaram um mapa de pontos de venda e o distribuíram nas redes sociais.

Além de difícil, é caro: antes da proibição desta sexta-feira, a previsão era de que cada cerveja iria custar o equivalente a R$ 74 nos estádios e nos eventos oficiais da Fifa. A mão do mercado pode encarecer o produto ainda mais, agora que ficou mais escasso.

A situação é parecida nos Emirados Árabes, próximos do Qatar. Quem destoa no Golfo é a Arábia Saudita. Ali, o álcool é proibido de maneira intransigente –e seu consumo pode ser punido com o chicote. Ainda assim, a realidade é mais complexa do que o texto da lei. No mercado negro, é possível comprar uma bebida alcoólica caseira chamada siddique.

O risco, com toda essa renovada atenção ao que o islã diz sobre o álcool, é reforçar o estereótipo segundo o qual essa religião é radical e incompatível com a modernidade. Esse tipo de ideia, é claro, depende de fazermos vista grossa ao fato de que os Estados Unidos também proibiam a bebida nos anos 1920.

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