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Na crise da Ucrânia, ameaças de guerra e resultados indesejados; leia análise

Os EUA reforçou as forças da Otan na Europa, suscitou o povo da Finlândia e da Suécia a considerar a adesão à Otan

Redação Jornal de Brasília

15/02/2022 6h28

George Liber*

A guerra pode começar a qualquer momento entre Rússia e Ucrânia, arrastando muitos países para a maré de violência. Com mais de 130 mil soldados concentrados nas fronteiras ucranianas, não está claro qual será o próximo passo de Vladimir Putin.

A ameaça de guerra é real ou não passa de um blefe elaborado? Putin escalará as tensões ou recuará? Seus soldados podem estar prontos para a batalha, mas a esse ponto são poucos demais para marchar sobre a Ucrânia, esmagar qualquer resistência e estabelecer um regime de ocupação efetivo que abranja todo o país, cujo território engloba 603,5 mil km², pouco menos que o Texas.

A Rússia lançará uma incursão limitada e depois se retirará? Reconhecerá as autoproclamadas repúblicas separatistas de Donetsk e Luhansk, apoiando-as militarmente? Ou lançará uma brutal guerra cibernética, incapacitando a economia ucraniana? Ou adotará uma combinação de várias das opções acima? Só Putin sabe.

Mesmo se ele decidir não fazer nada, suas ações poderão ter produzido dois desdobramentos indesejados. De um lado, ao ameaçar a Ucrânia tão abertamente, ele ocasionou maior coesão entre os aliados dos EUA, reforçou as forças da Otan na Europa, suscitou o povo da Finlândia e da Suécia a considerar a adesão à Otan e inflamou o povo da Ucrânia.

Desde fevereiro de 2014, a Ucrânia está envolvida numa guerra de baixa intensidade com a Rússia, que o ocupou depois anexou a Crimeia, e alimentou insurgências no leste ucraniano. Milicianos com apoio russo ainda ocupam 7% do território da Ucrânia e ameaçam (com ajuda do Exército russo) penetrar mais fundo.

O uso que a Rússia faz do preço da energia como arma, seus ciberataques, suas campanhas de desinformação e suas ameaças de guerra total buscaram impedir a Ucrânia, joia da coroa do Império Russo e da União Soviética, de perseguir sua própria agenda política, independentemente da Federação Russa, e consolidar suas reformas democráticas.

Essas intervenções uniram o povo da Ucrânia como nunca, convencendo os ucranianos a perceber a Rússia como uma ameaça à existência da independência de seu país. Em janeiro de 2022, pesquisas de opinião constataram que 72% dos ucranianos consideram a Rússia uma potência hostil. Em resposta a esse estado de guerra, os ucranianos apoiam entusiasticamente instituições euro-atlânticas, muito mais do que duas décadas atrás. Em novembro de 2021, uma sondagem registrou que 62% dos ucranianos aspiram juntar-se à União Europeia, e 58% desejam a adesão de seu país à Otan.

Mas para Putin e seus aliados, o compromisso da Rússia de manter a esfera de influência sobre o flanco ocidental anula o direito soberano da Ucrânia de escolher suas próprias políticas, domésticas e externas. Em um ensaio publicado em julho do ano passado, ele declarou que russos e ucranianos são um só povo, que a Ucrânia independente permanece um fantoche do Ocidente e que a “verdadeira soberania da Ucrânia somente é possível em parceria com a Rússia”.

A esmagadora maioria dos 43 milhões de habitantes da Ucrânia discorda. Se seu país for invadido, eles lutarão; se for ocupado, eles frustrarão o novo regime. Como sublinhou Maquiavel séculos atrás, quanto mais tempo as pessoas vivem em liberdade, com mais força resistirão a esforços de potências estrangeiras de subjugá-las.

Por outro lado, mesmo se Putin desistir de uma invasão, ele continuará a minar a legitimidade da Ucrânia enquanto Estado soberano e a condenar o futuro da Ucrânia na UE e na Otan. Ao sinalizar a importância da Ucrânia para a Rússia, concentrando grandes contingentes de tropas e fazendo exigências inegociáveis, ele forçou as lideranças da UE e da Otan a reconfirmar publicamente que todos os países, incluindo a Otan, têm direito a aderir às suas instituições uma vez que atendam aos critérios de admissão.

Mas essa reafirmação pública também fomenta dúvidas privadas a respeito do futuro da Ucrânia na Otan. Seus líderes percebem que, sob Putin, as reações da Rússia à independência da Ucrânia ficaram mais histéricas. Sem nenhuma provocação, a Rússia mobilizou 100 mil soldados para as fronteiras da Ucrânia de março a abril de 2021 e depois novamente, de novembro de 2021 até o presente. Até mesmo considerar trazer a Ucrânia para baixo do guarda-chuva da Otan gerará constantes problemas e confrontações com a Rússia.

Os líderes da Otan entendem que não podem declarar moratória numa futura adesão, mas seguirão atrasando o processo de inscrição da Ucrânia. Entre eles, assim como entre a maioria dos políticos americanos de ambos os partidos, muito poucos querem dar a garantia do Artigo 5.º (um ataque contra um membro é um ataque contra todos) à Ucrânia. Eles planejam defender a Ucrânia com a ameaça de sanções incapacitantes caso a Rússia invada. Mas esse conjunto de respostas em duas frentes não resolverá o problema que Putin criou; apenas ressalta a incerteza do Ocidente, que encoraja Putin.

Em grande medida como a independência da Tchecoslováquia e da Polônia para Hitler, nos anos 1920 e 1930, Putin percebe a Ucrânia independente como uma afronta psicológica e política. Mesmo se a Ucrânia não buscar a adesão na Otan e — em vez disso — adotar uma estrita neutralidade, seu status de não alinhamento não contentaria Putin nem evitaria uma futura agressão. /TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL

*É PROFESSOR DE HISTÓRIA DA UNIVERSIDADE DO ALABAMA, EM BIRMINGHAM, E AUTOR DE ‘TOTAL WARS AND THE MAKING OF MODERN UKRAINE, 1914-1954 (GUERRAS TOTAIS E A FORMAÇÃO DA UCRÂNIA MODERNA, 1914-1954)

Estadão Conteúdo

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