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Liberdade ou medo: a cultura pró-armas letal que assentou as bases dos EUA

A Suprema Corte dos Estados Unidos reafirmou nesta quinta-feira (23) o direito dos cidadãos a portar armas de fogo em público

Redação Jornal de Brasília

23/06/2022 16h55

Foto: Divulgação / AFP

Corria o ano de 1776 quando as colônias americanas tinham acabado de declarar sua independência da Inglaterra e, enquanto a guerra causava estragos, os pais fundadores debatiam: os americanos devem ter o direito a possuir uma arma como indivíduos ou apenas como membros de uma milícia local?

A Suprema Corte dos Estados Unidos reafirmou nesta quinta-feira (23) o direito dos cidadãos a portar armas de fogo em público, uma decisão tomada poucas semanas depois de um novo ataque a tiros em uma escola que deixou 21 mortos.

O debate continua e muitos não americanos se perguntam porque os cidadãos do país são tão apegados às armas de fogo usadas em massacres com uma frequência assustadora.

A resposta, segundo especialistas, está tanto nas tradições que sustentam a independência da Grã-Bretanha, quanto na crença mais recente entre os cidadãos de que precisam de armas para sua segurança pessoal.

Em duas décadas, período no qual mais de 200 milhões de armas chegaram ao mercado americano, o país passou da “Cultura das armas 1.0”, onde estas eram para caça ou esporte, à “Cultura das armas 2.0”, em que muitos as consideram essenciais para proteger seus lares.

Esta guinada foi potencializada por uma publicidade no valor de quase 20 bilhões de dólares financiada pela indústria das armas, aproveitando o medo do crime e da convulsão social, segundo Ryan Busse, ex-executivo desta indústria.

Os massacres recentes “são o subproduto de um modelo de negócio da indústria das armas, desenhado para tirar proveito do aumento do ódio, do medo e da conspiração”, escreveu Busse na revista online The Bulwark.

Armas e a nova nação

Nas décadas de 1770 e 1780 nos Estados Unidos, não havia dúvidas sobre a posse de armas. Alegava-se que o monopólio das armas por parte das monarquias da Europa e seus exércitos era a origem da opressão que os separatistas combatiam.

James Madison, o “pai da Constituição”, citou “a vantagem de estar armado que os americanos possuem sobre os povos de quase qualquer outra nação”.

Mas os pais fundadores entendiam a complexidade do assunto: que os novos estados não confiavam no incipiente governo federal e queriam leis e armas próprias.

Eles admitiram que as pessoas precisavam caçar e se proteger de animais selvagens e de ladrões, mas alguns temiam que isto simplesmente pudesse aumentar a falta de leis na fronteira.

As armas privadas eram essenciais para se proteger da tirania? Uma milícia local armada não podia desempenhar esse papel? Ou a milícia se tornaria uma fonte de opressão local?

Em 1791, chegou-se a um compromisso no qual se constituiu o enunciado mais analisado da Constituição dos Estados Unidos, a Segunda Emenda: “Sendo necessária uma milícia bem regulamentada para a segurança de um estado livre, o direito do povo a ter e portar armas não será infringido”.

Controle de armas

Durante os dois séculos seguintes, as armas se tornaram parte essencial da vida e do mito americanos.

O professor David Yamane, da Universidade Wake Forest, explica que a “Cultura das armas 1.0” as tratava como ferramentas para quem caçava e se defendia de animais selvagens, assim como para a conquista dos nativos americanos e o controle dos escravos.

Mas no começo do século XX, um país cada vez mais urbano se inundava de armas de fogo e experimentava uma delinquência elevada.

De 1900 a 1964, segundo o falecido historiador Richard Hofstadter, o país registrou mais de 265.000 homicídios por armas de fogo, além de 330.000 suicídios e 139.000 acidentes.

Em 1934, o governo federal proibiu as metralhadoras e exigiu que as armas fossem registradas e marcadas. Alguns estados adicionaram controles próprios, como proibir seu porte em público, visíveis ou ocultas.

E o público foi favorável: segundo o instituto de pesquisas Gallup, 60% dos americanos apoiavam a proibição total das armas curtas pessoais em 1959.

Os assassinatos de John F. Kennedy, Robert F. Kennedy e Martin Luther King deram mais apoio a uma regulamentação estrita em 1968.

Mas os fabricantes de armas e a Associação Nacional do Rifle (NRA), citando a Segunda Emenda, impediram uma nova legislação que fizesse algo mais do que implementar uma restrição facilmente contornável à venda direta de armas por correio.

Segunda Emenda sagrada

Nas duas décadas seguintes, a NRA se aliou aos republicanos para insistir em que a Segunda Emenda era absoluta em sua proteção ao direito às armas e que qualquer regulação era um ataque à “liberdade” dos americanos.

Segundo Matthew Lacombe, professor do Barnard College, conseguir isto implicou em que a NRA criasse e divulgasse uma ideologia centrada nas armas e na identidade social distinta para seus donos.

Estes últimos se uniram a esta ideologia, formando um poderoso bloco de votos, especialmente em zonas rurais que republicanos buscavam arrebatar dos democratas.

Jessica Dawson, professora na academia militar de West Point, disse que a NRA se aliou à direita religiosa, que acredita na primazia do cristianismo na cultura americana e na Constituição.

A liderança da NRA “começou a usar uma linguagem mais religiosa para elevar a Segunda Emenda sobre as restrições de um governo secular”, explicou Dawson.

Defesa própria

Embora esta mudança de abordagem sobre a Segunda Emenda não tenha ajudado os fabricantes de armas, que viram suas vendas caírem diante de um forte declínio nos esportes e caça e tiro na década de 1990.

Isto abriu a via para a “Cultura das armas 2.0”, quando a NRA e esta indústria começaram a dizer aos consumidores que precisavam de armas para se defender, segundo Busse.

Isto ocorria quando Barack Obama se tornava o primeiro presidente afro-americano, ao mesmo tempo em que ascendia o nacionalismo branco.

“Há quinze anos, às custas da NRA, a indústria das armas de fogo fez uma guinada obscura quando começou a comercializar armas e equipamentos táticos cada vez mais agressivos e militaristas”, acrescentou.

Muitos estados responderam à preocupação de um suposto aumento da criminalidade ao permitir às pessoas portar armas em público sem permissão.

De fato, a criminalidade violenta tendeu a diminuir durante os últimos vinte anos, embora os homicídios relacionados às armas de fogo tenham aumentado nos últimos anos.

Isso, assegura Yamane, da Wake Forest, foi um ponto de inflexão-chave para a “Cultura das armas 2.0”, que impulsionou as vendas de armas curtas, que pessoas de todas as raças compraram diante dos temores exagerados com a violência interna.

As vendas dispararam desde 2009, superando mais de 10 milhões ao ano desde 2013, principalmente fuzis de assalto AR-15 e pistolas semi-automáticas.

“A maioria dos donos de armas hoje, especialmente os novos, destacam que a defesa própria é a razão principal para possuir uma arma”, diz Yamane.

© Agence France-Presse

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