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A outra Cidade de Deus, a favela de Guayaquil que incuba violência

Monte Sinaí é um morro com 55 assentamentos irregulares que cresceram atrás do próspero porto equatoriano

Redação Jornal de Brasília

19/08/2022 15h28

Foto: Marcos PIN / AFP

Agora é um porto assustado com o crime das gangues de narcotráfico nas ruas e prisões, mas uma violência menos barulhenta já se enraizou nas montanhas de Guayaquil, em uma favela com nome bíblico e menos conhecida que a homônima no Rio de Janeiro.

Monte Sinaí é um morro com 55 assentamentos irregulares que cresceram atrás do próspero porto equatoriano, envolvido em uma espiral sangrenta que deixou 861 homicídios até agora este ano, 32,5% de todos os casos registrados no país.

Em seus 9.300 hectares (100 km2), meio milhão de pessoas sobrevivem sem serviços básicos, segundo o censo municipal de Guayaquil (2,8 milhões de habitantes).

Só em Cidade de Deus, 40.000 pessoas pobres vivem espremidas em casas semi-acabadas ou pré-fabricadas, tão estreitas que os banheiros ficam do lado de fora.

Os primeiros a se instalarem neste local foram os evangélicos protestantes que deram o nome de Cidade de Deus, o mesmo da famosa favela carioca que o cinema retratou em 2002.

Aqui “cada casa tem fossa séptica. Fizemos um esforço para colocar postes para a eletricidade; quatro postes na rua nos custaram 200 dólares”, diz Marisol Chávez.

Líder de bairro de 40 anos, Chávez mora em um quarto com duas camas juntas. Até recentemente sobrevivia como camelô e do trabalho esporádico como pedreiro de seu marido, mas com o nascimento recente de seu bebê passou a dedicar-se aos seus cuidados. “Não temos quase nada e sofremos muito”, abrevia.

Chávez chegou ao morro em 2019 expulsa de outro assentamento irregular. Aqui “não havia nada, pura vegetação rasteira, terra, arbustos com espinhos”, lembra.

A superlotação habitacional em Guayaquil (14,6%) supera a média nacional (9,6%), segundo a autoridade estatística (INEC). A pobreza (20,1%) também é maior no porto do que no resto do país (16,7%).

“Vacinar”

Nascida de uma invasão há 22 anos, Cidade de Deus também carece de água potável. Caminhões-pipa sobem pelas ruas sem asfalto. Um tanque de 55 galões custa 75 centavos de dólar, enquanto no rico setor de La Puntilla um metro cúbico de água potável (264 galões) custa 0,72 centavos de dólar.

Pobreza, superlotação, falta de serviços básicos e violência compõem o que a ONU chama de “armadilha da pobreza”, da qual é difícil escapar.

As gangues criminosas estenderam seus braços até o superlotado Monte Sinai. “Casa vigiada”, diz uma placa.

Vizinhos dizem que a frase é um aviso intimidador para “aqueles que devem dinheiro a Los Choneros”, uma das 26 organizações criminosas que atuam no Equador.

Os membros de gangues extorquem ou “vacinam” as comunidades para garantir sua segurança, mas na realidade é o custo que devem pagar para viver.

Em poucos dias passarão de casa em casa cobrando “dois dólares”, avisou um dos chefes da facção, segundo um dos moradores.

As gangues usam os jovens como mão de obra barata. Eles “são cem vezes mais propensos a caírem no tráfico”, diz César Cárdenas, diretor do Observatório de Serviços Públicos de Guayaquil.

Sem projeto

Antes das primeiras invasões, o Monte Sinai era uma área de propriedades privadas e estatais onde um traficante também havia construído sua fazenda, conta a arquiteta e urbanista Rosa Rada.

Com a estrada Perimetral, que liga a zona industrial ao porto, o morro começou a se “urbanizar” em 1984.

Para chegar ao centro de Guayaquil, os moradores da Cidade de Deus devem caminhar cerca de meia hora até a estrada mais próxima e usar transporte público, em trajetos que podem levar até uma hora e meia.

As escolas também estão longe. Durante a pandemia, as crianças receberam uma ou outra aula em lousas e mesas instaladas em pátios empoeirados.

Segundo o Ministério de Desenvolvimento Urbano e Habitação, um terço da área de Guayaquil é habitada irregularmente por migrantes rurais que, em muitos casos, foram enganados por traficantes de terras.

As autoridades locais planejam legalizar 8.000 casas em um plano de regularização progressiva. Sem habitação “não há projeto de vida nem se pode planejar um futuro”, diz o chefe do Observatório.

© Agence France-Presse

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