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Economia

Estado tem de fazer match para saber do que os pobres precisam, diz economista

Machado defende também que o país interrompa a pobreza intergeracional, que leva filhos de pais pobres a se tornarem pais de filhos pobres

FolhaPress

07/10/2021 15h20

Foto: Agência Brasil

Fernando Canzian
SÃO PAULO, SP

Para a economista e coordenadora do Núcleo de Gestão Educacional do Insper, Laura Muller Machado, o Estado brasileiro precisa fazer uma espécie de “match” com os mais pobres para identificar e tentar atender suas necessidades.

Para isso, deveria usar os chamados Cras (Centros de Referência de Assistência Social), presentes em mais de 95% dos municípios. Muller Machado defende também que o Brasil interrompa o atual ciclo de pobreza intergeracional, que leva filhos de pais pobres a se tornarem, no futuro, pais de filhos pobres.

O Brasil é um dos países do mundo que menos gasta com crianças em relação aos idosos. Para cada R$ 6 destinado em políticas públicas (como Previdência) para os mais velhos, apenas R$ 1 é endereçado às crianças. No Japão, reconhecido por tratar bem os idosos, essa proporção é de R$ 3 para R$ 1.

PERGUNTA – O que leva a pobreza a ser tão persistente no Brasil, apesar do nível significativo de gasto social, de 25% do PIB? O que fazer a respeito?
LAURA MULLER MACHADO –
O que não temos é um programa focalizado mais abrangente, além do Bolsa Família. Não conseguimos identificar e fazer todos esses recursos chegarem a quem realmente precisa. A primeira coisa a ser feita é acessar quem de fato precisa de apoio. Hoje, damos uma quantidade pequena de recursos a uma quantidade muito grande de pessoas, que não conseguem superar a situação de pobreza ou extrema pobreza.
É um problema de “matching”. Temos os recursos, mas não conseguimos chegar a essas pessoas.
Um exemplo é a pandemia. Identificamos de uma hora para outra um volume muito grande de pessoas que estavam invisíveis aos olhos do Estado. Houve um chamamento do Estado e as pessoas foram atrás desses recursos. Não seria o caso de o Estado ter procurado antes essas pessoas, por meio de um programa, para ver se faltava algo essencial?
Um exemplo clássico são mães que não trabalham porque não têm com quem deixar seus filhos, além de outras necessidades. Temos uma ampla rede com os Cras, que podem fazer esse papel perfeitamente.
Mas, para isso, a gente depende de um Estado que converse com essas pessoas, que conheça e forneça o que elas precisam. Seja o Bolsa Família, creches, centro-dia para cuidar de idosos. Mas não temos ideia do que os mais pobres precisam.
Em outubro de 2020, identificamos que tínhamos cerca de 13 milhões de desempregados e mais uns 12 milhões que saíram da população economicamente ativa. Isso dá mais ou menos 25 milhões de pessoas. Mas fornecemos auxílio emergencial a cerca de 70 milhões.
Num primeiro momento, talvez tenha sido uma boa ideia socorrer todo mundo, para que ninguém passasse necessidade. Mas um ano se passou e fizemos uma nova rodada do auxílio [embora menor]. Nesse período, não conversamos com essas pessoas.

P. – Isso não poderia ser feito minimamente por meio do Bolsa Família?
LMM –
O Bolsa Família é um programa muito bom, com volume de quase R$ 35 bilhões anuais. Mas com o auxílio emergencial gastamos cerca de R$ 300 bilhões. Foram dez anos de Bolsa Família e acessando todo mundo. E muita gente não precisava dos recursos.
O problema do Bolsa Família é que não está acoplado a um programa de inclusão produtiva, para que a pessoa se torne autônoma. É auxílio de socorro, mas que não vem com apoio para que a pessoa deixe de depender dele no futuro. O Chile Solidário, por exemplo, tem essa característica.
Os R$ 35 bilhões do Bolsa Família também são um valor muito pequeno [equivalente a menos de 0,5% do PIB]. Isso é muito menos do que os 25% do PIB que usamos em todos os nossos programas sociais. Temos muitos outros. Como o abono salarial, auxílio-creche, auxílio-leite.

Não seria melhor mapear todos esses benefícios sociais que pagamos e focalizá-los? Pois o Bolsa Família em si é muito pequeno se comparado ao restante. Temos um mar de programas espalhados e sem foco, um pouco bagunçados. Seria muito bem-vinda uma rediscussão de tudo isso.

P. – Em que sentido deveríamos encaminhar essa discussão?
LMM –
Todas as sociedades tem crianças e jovens, adultos e idosos. Crianças e idosos tipicamente não geram renda para seu sustento. O papel do Estado é taxar os trabalhadores adultos e garantir que todos tenham uma renda mais ou menos uniforme.
Muito preocupada com isso, a ONU criou o National Transfers Account, que estuda como os países vêm alocando seus impostos para diferentes idades. E o Brasil é o único país estudado pela ONU e pela Cepal [Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe] em que para cada R$ 1 alocado em suas crianças, há R$ 6 ou R$ 7 destinados a idosos [sobretudo via Previdência].
O próximo país que faz uma alocação desproporcional é o Peru, de R$ 1 para R$ 4. No Japão, a proporção é de R$ 1 para as crianças e R$ 3 para os idosos.
O argumento de que criança é mais “baratinho” que idoso não se sustenta na experiência de outros países. Seria muito bem-vindo um debate em nossa sociedade sobre esse desequilíbrio. Sabemos que idosos votam, e crianças, não. Mas precisamos discutir questões como essa.
Estamos mais cientes, por exemplo, de nosso problema com o racismo e a desigualdade de gênero. Não sei se sabemos tanto sobre os nossos problemas intergeracionais. Não discutimos isso, e a diferença entre o que gastamos com crianças e idosos deveria ser analisada.
A sociedade só vai combater um problema quando ela reconhecer sua existência. Como sociedade, me parece que queremos evoluir e ser mais igualitários. Mas isso depende de termos consciência plena do problema. A questão intergeracional não está presente no debate.

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