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Economia

Depois de aumentar renda com pejotização, classe média sente saudades da CLT

Maurício, que viu sua renda mensal dobrar desde então, chegando a R$ 20 mil, após aumentar o número de clientes

FolhaPress

18/09/2021 12h16

São Paulo – Prédios (Agência Brasil/Arquivo)

Daniele Madureira

Há cinco anos, o publicitário Maurício Nisi Gonçalves, 52 anos, não pensou duas vezes em deixar o emprego em regime CLT (Confederação das Leis do Trabalho) em uma editora para abrir a própria empresa, e assim continuar prestando serviços de design e produção gráfica ao ex-patrão.

“Eu queria um aumento de salário e a empresa não topou, porque iria aumentar os custos dela. Mas ficou acertado que eu abriria a empresa e prestaria serviços”, diz Maurício, que viu sua renda mensal dobrar desde então, chegando a R$ 20 mil. Ele aumentou o número de clientes, alguns com contratos fixos, e diversificou os serviços, passando a fazer artes para mídia social.

Mas os custos também cresceram –e muito. Além dos impostos de uma empresa de lucro presumido (15% sobre a renda bruta) e dos gastos com o contador, ele paga R$ 3.500 pelo plano de saúde familiar e um plano de previdência de R$ 900 para ele e os filhos.

A fim de não perder clientes, Maurício subcontrata outros dois designers gráficos para trabalhos pontuais. Mas o seu principal trabalho fixo, que proporciona R$ 7.000 mensais, acaba de mudar de mãos: a empresa foi adquirida por outro grupo. E o novo dono já sinalizou que deseja fazer de Maurício um trabalhador CLT. “Se não aceitar, vou perder mais de um terço do meu faturamento”, diz ele, que sente falta das férias, do 13º salário e dos benefícios de um emprego com carteira assinada.

“Eu trabalho mais agora, mas tenho flexibilidade de horário, posso levar e buscar as crianças na escola, por exemplo. Mas a empresa já sinalizou que o trabalho será híbrido, o que conta muito para mim.”

O exemplo de Maurício diz muito sobre as novas relações de trabalho vividas pela classe média no Brasil. Com raras exceções –concentradas nos setores de tecnologia e finanças–, essa mão de obra que vende seu conhecimento intelectual encontra cada vez menos vagas formais no mercado e vê crescer a precarização das suas condições de trabalho.

A esses profissionais, empresas costumam oferecer um contrato com ganhos maiores em relação a um trabalhador em regime CLT. Enquanto o setor privado deixa de arcar com os impostos da contratação formal, os trabalhadores abrem uma empresa e passam a arcar com seus tributos, contador e todos os benefícios que estariam incluídos em um pacote formal de trabalho, como plano de saúde e seguro de vida.

Além de se submeterem muitas vezes a uma jornada extenuante, sobre a qual não existe qualquer regulação, esses profissionais não contam com a “poupança forçada” do FGTS (Fundo de Garantia por Tempo de Serviço), equivalente a 8% do salário, que serve como socorro financeiro em caso de demissão ou ser usada para compra da casa própria.

“A verdade é que a gente ganha mais [que um CLT], mas nunca guarda”, diz a advogada Patrícia [nome fictício], 43 anos. Com uma renda bruta mensal de R$ 12 mil, ela constituiu uma Sociedade Individual de Advocacia, uma figura jurídica para a profissão, que permite ganhos de até R$ 180 mil ao ano. O valor é superior ao permitido hoje ao microempreendedor individual, o MEI, que está em R$ 81 mil ao ano, mas que deve passar a R$ 130 mil anuais com uma nova legislação.

No escritório de advocacia onde trabalha, Patrícia recebe 13º salário e férias, inclusive o abono de um terço. “Mas não tenho FGTS, nem pago um plano de previdência”, afirma. Por meio da sua empresa, adquiriu um plano de saúde para ela, o marido e o filho por pouco mais de R$ 2.000 mensais. Também paga um seguro de vida individual, de R$ 500.

Do seu trabalho vem a única remuneração fixa da casa, já que o marido, engenheiro elétrico, foi demitido há cerca de dois anos de uma empresa de telecomunicações e desde então presta serviços. “Faz falta um mensal fixo”, diz, sobre o marido. Mas Patrícia avalia que o mercado de trabalho vive um momento de transformação e que cabe ao profissional criar ele próprio as suas garantias.

Na opinião do especialista em direito do trabalho André de Melo Ribeiro, do escritório Dias Carneiro Advogados, o fenômeno da “gig economy” –ou economia dos bicos, que começou no setor de tecnologia com plataformas como o Uber, que prometiam que cada um seria o seu patrão– transbordou para as mais diferentes áreas e atingiu a classe média intelectualizada.

“É fato que teremos cada vez menos emprego formal como conhecemos no regime CLT, um modelo criado nos anos 1940 que se mostra cada dia mais distante”, diz Ribeiro. “Mas é preciso que a legislação englobe estas novas maneiras de produção intelectual para garantir um trabalho decente, como preconiza a OIT [Organização Internacional do Trabalho]”, afirma. “O direito tem que refletir os valores da sociedade”.

O especialista lembra que a CLT (Consolidação das Leis do Trabalho) é muito clara: um prestador de serviços PJ não se submete a uma remuneração fixa mensal, não cumpre horário e não usa equipamentos da empresa contratante, uma vez que essas premissas caracterizam um emprego formal. “Se o trabalho prestado pelo PJ não for um complemento da renda, ao contrário, a renda do PJ depender daquele trabalho, é uma relação empregatícia disfarçada.”

Foi o que aconteceu com a jornalista Joana (nome fictício), 48 anos. Como pessoa jurídica, ela tem um contrato fixo de R$ 5.000 com uma agência de comunicação, com direito a 21 dias de férias. Para aumentar sua renda mensal para R$ 9.000, ela aceita “jobs” da agência, tarefas que deveriam ser pontuais, mas se tornaram fixas.

Metade do mês, sua jornada dura em média 15 horas por dia. Na outra metade, 12 horas. Entre os “jobs”, estão plantões aos fins de semana –ela realiza três ao mês, sendo que um deles já está incluído no pacote dos R$ 5.000.
“A reforma trabalhista deixou a agência muito à vontade para explorar mais a figura do PJ”, diz ela, referindo-se à sua condição de pessoa jurídica. Joana sempre teve muito medo de sofrer um acidente de trabalho. Até antes da pandemia, ela precisava chegar às 4h na agência, na zona oeste de São Paulo. Um colega que costumava chegar um pouco depois foi assassinado durante uma tentativa de assalto a caminho do trabalho.

“A empresa não pagou qualquer indenização à família, que ainda reivindica na justiça os seus direitos”, diz Joana, que agora está em home office.

“Cheguei ao meu limite, não consigo mais. Arco com os impostos, com o contador, não tenho seguro de vida, nem previdência privada. Preciso pagar a prestação do meu apartamento, mas decidi sair para um emprego CLT, que oferece 22% menos, para ter alguma qualidade de vida.”

Os “disfarces” desta precarização do trabalho podem ser encontrados inclusive no setor público. Amanda Lopes, 39 anos, trabalha há oito anos como professora temporária na rede pública estadual de São Paulo. Formada em administração e em cinema, com um mestrado também em cinema, ela ganha R$ 2.500 mensais como professora de Artes, para uma jornada de 32 horas semanais.

“O estado não abre vagas há alguns anos”, diz ela, que em tese precisaria ter licenciatura em vez de bacharelado para ministrar aulas. “A renovação do contrato acontece anualmente, sem qualquer reajuste na remuneração”, afirma Amanda, que também não conta com os mesmos benefícios dos professores efetivos. “Enquanto eles têm direito a 30 faltas no ano, o meu limite é de seis faltas.”

Com a rescisão de um trabalho anterior, Amanda, que é transgênero, montou uma produtora de conteúdo, a Mulheres Audiovisual. Como o negócio ainda não emplacou, ela se tornou motorista de aplicativo, das 18h às 23h. “Eu adoraria estar empregada em regime CLT, assim não precisaria fazer Uber”, afirma.

Para André de Melo Ribeiro, o novo normal exige dos legisladores algum nível de proteção para quem é CLT e para todos aqueles que não o são. “Até porque o futuro que se desenha é uma remuneração de, no máximo, dois salários mínimos na aposentadoria.”

O economista Fernando de Holanda Barbosa Filho, pesquisador do Ibre-FGV (Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas), concorda. “Desde 2015, a dinâmica do mercado de trabalho tem sido guiada majoritariamente pelo mercado informal”, diz ele, destacando que nem todo trabalhador PJ é precarizado.

“Alguns preferem, para não ter vínculos”, diz.
Segundo o pesquisador, a legislação ainda não tem resposta para o que fazer com aqueles que não têm carteira assinada -são quase 25 milhões de trabalhadores por conta própria no país, a maioria na informalidade, segundo o IBGE.

Ribeiro lembra que as transformações no mundo do trabalho já vinham em curso antes da pandemia, mas foram aceleradas pela Covid-19. “As condições para o trabalho remoto, por exemplo, não estão definidas. E muitas pessoas vão continuar neste formato ou, pelo menos, no híbrido”, afirma. “Mas os gestores não estão preparados para lidar para esta nova realidade.”

Segundo o especialista, muitos gestores acreditam que trabalhar em casa significa estar disponível 24 horas por dia, sete dias por semana para a empresa. “Isso não funciona, está gerando cada vez mais casos de burnout, depressão e problemas psiquiátricos.”

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