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Brasil

Perfil: o florescer do mandacaru; professora de educação física de PE ampliou potencialidades de pessoas com deficiência

Pai, agricultor e barbeiro. E mãe, dona de casa, analfabeta, criaram nove filhos, isso sem contar os filhos de criação, acolhidos

Redação Jornal de Brasília

23/04/2024 15h52

Foto: Arquivo Pessoal/Agência Ceub

Por Maria Clara Britto
Agência de Notícias Ceub/Jornal de Brasília

Como tantas Marias antes, como será tantas Marias depois, Maria das Graças de Alencar Carvalho nasceu no sertão pernambucano, Salgueiro, cidade a mais de 500 km do Recife. Cidade de solo árido, onde a vegetação é testemunha: não é fácil a vida de quem nasce ali.

Pai, agricultor e barbeiro. E mãe, dona de casa, analfabeta, criaram nove filhos, isso sem contar os filhos de criação, acolhidos.

“Sou filha de um casal maravilhoso e somos oito filhos do casal, mais um filho que meu pai tinha. Então, somos nove no total. E minha mãe e meu pai ainda acolheram alguns estudantes que se tornaram filhos também. E quanto a isso, eu acho que perdi a conta”, diz Maria das Graças.

Todos os oito filhos do casal completaram a graduação. Do ventre da analfabeta saiu professor, engenheiro, veterinário, advogado e mestre, mas nenhum desempregado. “Eles diziam que o único caminho que a gente podia chegar a algum lugar seria o estudo, o conhecimento.”, destaca Graça. 

Corridas e braçadas

No fundamental, Maria das Graças conheceu sua paixão pela educação física, seu primeiro esporte foi o atletismo.

“A cidade era muito retrógrada, não tinha muita diversidade de esportes”, explica. Quando chegou ao ensino médio, ela se mudou para Recife, se juntando aos irmãos mais velhos.

“O primeiro irmão foi levando o segundo e o terceiro, e sucessivamente um ia ajudando o outro. Era um cordão do bem. Um ia puxando o outro para que a gente tivesse oportunidades melhores na vida”, relata.

Chegando ao Recife, foi estudar numa escola maior, como era atleta, também conseguiu uma bolsa de estudos. Assim, veio sua paixão pela natação. 

Três anos depois, realizou seu sonho e passou na faculdade federal, no tão amado curso de educação Física.

“O sonho que eu tinha era fazer educação física, não para trabalhar no tradicionalismo e no tecnicismo. Eu queria ser diferente. Eu queria trabalhar com aquilo que ninguém acreditava… a educação física para pessoas com deficiência”, relembra.

Este sonho tem raízes em sua própria casa, Graça tem uma irmã com asma e um pai com deficiência na perna por causa de um tiro, ainda da época de ex-combatente.

Ela nunca entendeu porque a irmã tinha atestado médico para não participar das aulas de educação física, quando via seu pai fazendo tudo o que precisava mesmo sendo deficiente.

“Meu pai era deficiente físico, mutilado de guerra e ele fazia tudo. Levava uma vida altamente normal, brincava, dançava, andava a cavalo (…) Ele era a prova concreta que eu precisava para acreditar na profissão que eu escolhi, que foi trabalhar com pessoas com deficiência”, relata.

Vida Profissional

Após a graduação, ela voltou para o interior, para Petrolina, no Vale do São Francisco. Maria escolheu seguir o caminho de professora, sua base principal foi sempre tratar o aluno com carinho, respeitando os limites e capacidades e despertando nele o que ele podia ter de melhor.

Quando começou a trabalhar com pessoas com deficiência na prática, notou que muitas pessoas só viam as dificuldades.

“Quando a gente olha para um deficiente, a gente não vê as potencialidades dele, a gente vê apenas o coitadinho, ele não pode fazer isso, não pode fazer aquilo”.

Ela decidiu olhar além da deficiência.

“Eu fechei meus olhos para essas dificuldades e procurei enxergar na pessoa com deficiência uma única coisa: as potencialidades.”, afirma.

Maria das Graças Alencar foi trabalhar no Centro de Educação Física de Petrolina, onde criou o projeto Paraesporte.

Inicialmente, era apenas ela de professora e duas modalidades, atletismo e natação.

Alguns meses depois, no aniversário da cidade, dia 21 de setembro de 1993, ocorreu a primeira Paraolimpíada de Petrolina, com 52 atletas.

Com o tempo o projeto foi crescendo, agregando mais professores e aumentando o leque de modalidades.

Dentro desse projeto, o professor Marciano fundou a Associação Petrolina de Atletismo (APA), onde a professora contribuiu. Hoje, a APA tem sede própria com um número marcante de atletas presente nas paralimpíadas. 

Com o tempo, Graça descobriu que o segredo para ensinar é a paciência e o conhecimento.

Durante sua experiência, não encontrou diferença entre ensinar um aluno com deficiência ou sem.

“Eu não via obstáculos. Eu sempre busquei no meu aluno, quer seja ele pessoas com deficiência, quer seja pessoas ditas normais. Eu sempre busco as potencialidades de cada um, o que eles podem me oferecer”, diz. 

Ela acrescenta que ser professor é viver uma troca de aprendizado.

“Quando eu vejo um aluno evoluindo dentro da piscina, nadando nos quatro estilos, aquilo é uma superação para mim também enquanto profissional”.

Em alguns casos, o próprio aluno ensinou a ela como ensinar a si mesmo.

Um relato foi quando ela viu seu primeiro aluno cego e com deficiência intelectual nadando. Ela descobriu que o aluno era movido a uma música, então começou a fazer um movimento na piscina no mesmo ritmo.

“Eu pegava a mãozinha dele e fazia marcha soldado, cabeça de papel. Eu fui aprendendo com ele. Quando eu vi Adonis nadando para mim, foi o maior presente profissional que eu poderia receber naquele dia, naquela vida, naquele momento”, emociona-se.

Outro momento marcante foi quando um aluno tetraplégico (mexia um braço muito mal e a cabeça, da cintura para baixo tinha muita dificuldade), vítima de um acidente, como um milagre, andou dentro da piscina.

“A gente colocou os espaguetes na parte posterior das axilas dele. Eu estava com a mão na cintura de Rômulo e Rômulo andando. E fazendo com a mãozinha, como se dissesse sai! Sai! Eu permiti e me afastei. Estava sem acreditar… Rômulo estava andando”.

Ela relatou que nunca esqueceu o que ele disse depois desta aula. “Ele olhou pra mim e falou ‘tudo o que eu queria na minha vida, era que o mundo fosse uma piscina’”. 

Maria das Graças também foi professora de uma escola estadual do governo da Bahia, o Codefas.

Durante suas aulas, a educação desportiva e integração com a comunidade foram incluídas no plano de ensino.

“É de grande importância você ter o seu aluno fazendo um movimento e ele compreender o movimento que ele está fazendo”, explica.

Um dos projetos de integração foi uma parceria com a Pastoral da Terceira Idade em Petrolina.

Graça percebeu que os idosos de casas geriátricas eram mais bem cuidados que os que estavam na casa dos seus filhos e netos. No projeto, cada aluno tinha que “adotar” um idoso da casa geriátrica e fazer uma visita mensalmente.

Assim, os alunos tiveram contato com idosos saudáveis, com doença de Parkinson, Mal de Alzheimer e outros problemas.

“Fazíamos uma pesquisa prévia na sala de aula, para eles terem um conhecimento teórico. Quando eles chegavam na casa geriátrica, batia neles a empatia, a sensibilidade, a vontade de mudar em casa”. 

Com a velhice, vem a solidão, o esquecimento, como um livro empoeirado em uma estante, com tanta história para contar, mas ninguém para lê-lo.

Com o projeto, a professora deu visibilidade a eles.

Depois, Maria recebeu diversas cartas dos alunos agradecendo a iniciativa.

“Recebi vários depoimentos deles dizendo para mim ‘Professora, a senhora mudou a minha vida. Hoje eu danço com meu vozinho. Hoje eu abraço o meu vozinho. Hoje eu levo ele para passear na praça. Porque, antes de conhecer o idoso eu não fazia isso. Meu avô vivia lá no cantinho dele’”.

Alzheimer

“Eu percebi que minha mãe estava com Alzheimer quando ela não conseguia mais rezar o rosário completo, ela costumava rezar todos os dias”, afirma.

Em 2008, após sua mãe, Bárbara de Alencar quebrar o fêmur em uma queda, Maria das Graças largou tudo em Petrolina e voltou a Salgueiro, para cuidar da mãe.

“Competência para arranjar outro emprego eu tenho. Agora, competência para ter outra mãe igual a minha é difícil”, enfatiza.

Antes da doença, Bárbara foi visitar a filha Maria das Graças em Petrolina, de madrugada, quando os primeiros raios de sol entraram no horizonte, depois das duas estarem saindo de uma festa.

Elas sentaram em um café e conversaram.

Foi neste momento que a mãe fez três pedidos à filha: Primeiro, que cuidasse de suas irmãs, nunca deixasse nada faltar a elas. Graça é a filha do meio, tem 4 irmãs mulheres, uma engenheira, outra advogada e duas morando na Suíça. “A senhora vai pedir a mera professorinha.”, respondeu incrédula a mãe.

E ela replicou: “Você esqueceu um detalhe muito importante. Dessas cinco, a professorinha que é dona do nariz dela, não tem um escorpião no bolso e não tem medo de viver. E essa mera professorinha é a que eu confio para liderar”.

Depois, pediu para que nunca deixasse que ela virasse uma “velha fedorenta” e que nunca deixassem  interná-la em uma UTI.

Naquele último momento antes da doença, era como uma vidente prevendo o seu futuro e garantindo que mesmo com Alzheimer teria o final que definisse.

Para cuidar da sua mãe, Maria começou a fazer aquilo que já fazia a tantos anos…estudar.

“Quanto mais eu estudava, mais eu descobri uma coisa. Minha vida profissional me preparou para cuidar da minha mãe.”, disse com lágrimas nos olhos.

Bárbara de Alencar passou por todas as fases do Alzheimer durante o cuidado da sua filha.

“A fase do esquecimento, ela não é tão dolorosa. Para mim, a fase mais dolorosa é a fase da automutilação”, explicou Maria das Graças.

Quando ela estava nesta fase da doença, foi preciso arranjar estratégias para que fosse evitado, uma delas foi colocar luvas em seus braços, assim ela não iria se arranhar.

Após alguns meses cuidando da mãe, durante um banho, ela percebeu que tinha uma úlcera nas costas de dona Bárbara.

O dermatologista avisou que não poderiam deixar ela na mesma posição na cama por muito tempo para não piorar.

Foi neste momento que os papeis de mãe e filha se inverteram e Maria das Graças, como muitos anos antes sua mãe tinha feito com ela, colocou a mãe no seu colo, como um bebê. E foi assim que se despediu. “Cuidando diretamente, foram quase sete anos. Depois que eu botei ela no colo, só Deus tirou.” E concluiu: “Foi a melhor coisa que eu fiz na minha vida.”.

Hoje, com 60 anos, 11 anos após o falecimento da mãe, perguntei como é a vida depois da morte. Maria das Graças respondeu usando apenas uma palavra: “Saudosa”.

Mas, assim como um mandacaru, na seca nordestina, ela se adapta, e se você tiver um momento a mais para conhecê-la irá perceber as suas flores.

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