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Brasil

Oficial nazista alugava pedalinhos no Rio de Janeiro, aponta historiador; confira entrevista

“Ele era personagem de notícias, de reportagens e o que os jornais contavam que era um estrangeiro que veio para o Brasil recomeçar a sua vida”

Redação Jornal de Brasília

04/05/2022 15h48

Foto: Domínio público

Maria Clara Britto, Júlia Costa e Luana Nogueira
(Jornal de Brasília / Agência de Notícias CEUB)

Lançado dia 20 de dezembro de 2021, o livro O Homem dos Pedalinhos: Herberts Cukurs – a História de Um Alegado Nazista no Brasil do Pós-Guerra, de Bruno Leal Pastor de Carvalho, trata sobre a história do personagem-título (1900 – 1965), que, após a Segunda Guerra Mundial, se mudou para o Brasil. Foi empresário do ramo de táxi-aéreo, festejado pela imprensa e com documentação legal. Ele foi acusado de crimes de guerra durante a ocupação nazista na Letônia, país em que nasceu. Cukurs era conhecido no Rio de Janeiro como o proprietário dos pedalinhos disponíveis para aluguel e diversão na Lagoa Rodrigo de Freitas.

“Cukurs se tornou uma personalidade muito popular no Rio de Janeiro. Ele era personagem de notícias, de reportagens e o que os jornais contavam que era um estrangeiro que veio para o Brasil recomeçar a sua vida. Ele estaria fugindo dos horrores do pós-guerra, da perseguição do comunismo. A imagem era de que o Brasil é essa nação que recebe os estrangeiros de braços abertos. Esse país em que os estrangeiros podem recomeçar as suas vidas’’”, contextualizou Bruno Leal, em entrevista à Agência Ceub. O pesquisador refuta a ideia de que o governo brasileiro protegeu o ex-oficial.

Descoberta

O pesquisador disse que sua curiosidade em relação a criminosos de guerra o nazismo que viveram no nosso país depois que a Segunda Guerra Mundial terminou começou durante a pós-graduação. “Eu fiz o mestrado na área de memória social e estudei efemérides relacionadas ao Holocausto. Quando eu trabalhava com essas fontes, muitas eram reportagens e notícias sobre o holocausto”. O assunto ficou guardado para trabalhos futuros.

Quando foi preparar o projeto para o doutorado, recordou a história de Herberts Cukurs, acusado de crime de guerra, nos anos 1950. Inicialmente, pensou em trazer outras três histórias também, como Franz Stangel, de Gustavo Wagner e de Joseph Mengle. Mas, percebeu que o caso de Herberts Cukurs era o que ele menos conhecia e o que mais despertou interesse por dois motivos. “Primeiro, porque foi um caso que ocupou a imprensa e a esfera pública brasileira durante 15 anos. Depois, porque ele atravessou diversos governos e mobilizou diferentes atores históricos”.

Sobre o processo de análise e obtenção dos documentos, o escritor explicou que, por ser uma pesquisa muito densa, foram mais ou menos três mil páginas de documentos. “Foi um desafio enorme fazer essa pesquisa, não só porque é um número muito amplo de documentos, mas também por serem documentos muito diferentes”.

História

O primeiro capítulo do livro trata sobre como se configura a questão dos criminosos nazistas no Brasil e em outros países da América do Sul. Nele, o escritor Bruno Leal explica que, ao longo do pós-guerra, difundiu-se uma narrativa produzida pela cultura de massa. “É possível perceber que boa parte dessas narrativas vão dizer que o Brasil, e a América do Sul como um todo, se tornou um grande paraíso para criminosos nazista depois da guerra”.

De acordo com Bruno Leal, essa chave explicativa fez muito sucesso no pós-guerra. Tanto que ela passou a explicar todos os casos conhecidos de alegados criminosos de guerra nazistas no Brasil. “Essa chave me incomodou muito porque embora essa visão fosse muito disseminada, a historiografia, até pouco tempo atrás, nunca se debruçou sobre esse tópico”.

Segundo o pesquisador, parecia haver uma relação inversamente proporcional. Quanto mais detetives, policiais, escritores, cineastas e jornalistas estudavam o tema, escreviam e produziam de uma forma geral sobre ele, menos os historiadores se sentiam inclinados a enfrentar essa questão.

“Essa imagem da América do Sul como um continente formado por repúblicas de bananas, onde prolifera a impunidade, onde os grandes criminosos se dirigem e buscam refúgio. Essa imagem alivia muito vários países da Europa, e também os Estados Unidos. Afinal, boa parte dos criminosos de guerra do nazismo depois da Segunda Guerra Mundial permanecem na própria Europa beneficiados por uma onda de impunidade”, considerou.

Cukurs no Brasil

A situação de Cukurs no Brasil era legal. Por isso, após as acusações, o governo brasileiro foi investigar. Assim que ele migrou para o Brasil com a identidade verdadeira, documentos foram emitidos pelas autoridades francesas. Além disso, ele tinha um bom reconhecimento da alegação diplomática semioficial da Letônia no Brasil, que deu um atestado de bons antecedentes para ele. Nos 1950 que ele ficou no Brasil, não houve nenhum pedido de prisão e nem de indiciamento. Por conta disso tudo, ele não tinha ido a julgamento na Europa nem em qualquer lugar.

Por isso, nessa primeira investigação, o governo brasileiro percebeu que não existiam provas substanciais o suficiente para a expulsão de Cukurs. Então seria necessário ir mais a fundo nessa investigação.

Outro fator importante é que a natureza da documentação que acusava Cukurs possuía problemas. A Federação das Sociedades Israelitas do Rio de Janeiro é quem estava acusando ele de ser um criminoso nazista. Essa acusação foi feita numa coletiva de imprensa em 30 de junho de 1950. Ela parte do conteúdo de cinco depoimentos de judeus sobreviventes do Holocausto, esses depoimentos foram organizados por uma entidade chamada Comitê para Investigações dos Crimes Nazistas nos Países Bálticos.

O Ministério da Justiça, quando soube das acusações e quando sofreu essa grande pressão social para expulsar Cukurs, solicitou os depoimentos originais contra ele. “Quando a Federação das Sociedades Israelitas recebeu o material original, foi surpreendida, pois os documentos não tinham formalidade jurídica, redigidos em folha de caderno, escritos a mão e sem firma reconhecida”, afirma o pesquisador.

“A federação não duvida em nenhum momento da verdade desses testemunhos. Não duvida desses sobreviventes. E nem tinha razões pra isso. Mas da forma como esses documentos estavam organizados, seriam bem pouco efetivos do ponto de vista legal.” Isso acabou atrasando a montagem do dossiê que a federação estava montando contra o Cukurs e que deveria ser enviada para o Ministério da Justiça. E mesmo, quando eles conseguiram formar esse dossiê não havia uma evidência suficiente do ponto de vista legal para se abrir o processo.

Governo Britânico

O Governo Britânico teve um papel crucial para a posição do Governo Brasileiro no caso do Cukurs. O Ministério das Relações Exteriores solicitou que a embaixada brasileira em Londres consultasse o Ministério das Relações Exteriores da Inglaterra (Foreign Office). Em um primeiro momento, o Governo Britânico se disponibilizou a ajudar as autoridades brasileiras, mas eles relataram que não havia nada de relevante contra o Cukurs nos documentos britânicos. No entanto, o Governo Brasileiro insistiu em consultar o Foreign Office, e aí surgiram os problemas.

O Governo Britânico expõe que mesmo que o Cukurs tivesse ação de chefia, como a imprensa vinha acusando, Cukurs não poderia ser considerado um criminoso de guerra. “Ele não foi chefe de gueto, mas os britânicos disseram que mesmo que ele tivesse sido, ele não seria considerado,a priori, um criminoso de guerra”. E, alguns anos depois, o governo Britânico resolveu não responder mais às autoridades brasileiras. Segundo Bruno Leal, isso enfraqueceu muito a montagem desse processo de expulsão no Brasil.

Extradição

Para um governo extraditar um estrangeiro, é necessário receber um pedido de extradição. No entanto, nesses 15 anos do caso, Cukurs esteve suscetível a um pedido de extradição, mas nenhum país estrangeiro solicitou esse pedido para o governo brasileiro. “A Guerra Fria vai ter um papel fundamental para que não seja tentado nenhum processo de extradição”. Segundo Leal, no contexto da Guerra Fria, o nazismo e as pessoas que atuaram pelo nazismo passaram a ser vistas em geral como uma questão do passado.

Cukurs, em paralelo a esses acontecimentos, se defendeu como pôde. Ele reconheceu que colaborou com os alemães e que ele lutou contra soviéticos, mas nega ter participado de ações de genocídio.

Diplomacia

Após o comportamento desfavorável do Governo Britânico, segundo Bruno Leal, a expectativa era que o Ministério da Justiça e o Ministério das Relações Exteriores encerrassem o caso, declarando que os depoimentos eram falsos, mas não foi isso que ocorreu.

“Se fosse um governo realmente empenhado em acobertar os Cukurs, essas deixas do governo britânico teriam sido a justificativa ideal para isso acontecer”
O Governo Brasileiro levou adiante a investigação e negou a naturalização de Cukurs, pois as autoridades ainda tinham dúvidas sobre a vida pregressa do ex-oficial.

Segundo Leal, a diplomacia não ficou imóvel no caso do Cukurs, mas a investigação foi prejudicada por uma série de limitações no contexto internacional e também no contexto nacional.

“O caso de Cukurs não era simples, porque era necessário contar ou uma colaboração de entidades, organismos e governos estrangeiros. E essa colaboração foi muito falha, foi muito aquém do que poderia acontecer, se esses organismos internacionais tivessem colaborado mais com o brasileiro talvez o desfecho do caso de Cukurs tivesse sido completamente diferente”

Repercussão

O pesquisador avalia que a imprensa não recebeu de forma positiva as acusações acerca do empresário: ”Quando vêm à tona as acusações contra Cukurs, a imprensa é pega de surpresa. Ela se sente traída pelo Cukurs. Se sente muito ingênua. E aí, vários jornalistas vão publicar reportagens editoriais falando ‘a gente não sabia que havia esse passado. A gente desconhecia as acusações. Nós fomos enganados.’ Então, é por isso também que os jornalistas vão ter um papel muito importante nesse grupo de pressão contra Cukurs pedindo a sua expulsão”, diz.

As diversas reportagens criaram no povo um sentimento de indignação que leva a diversos protestos. O Governo do Rio de Janeiro tomou uma série de ações contra o ex-militar, não renovando sua concessão para o negócio dos pedalinhos e recolhendo seus equipamentos antes do prazo de 30 dias que tinha sido dado a ele. Além disso, o Ministério da Marinha suspendeu a sua autorização para voar no Rio de Janeiro alegando que o serviço de táxi aéreo não estava devidamente regulamentado. No âmbito federal, o Ministério da Justiça também nunca concede a Cukurs a nacionalidade brasileira — apesar de tampouco tê-lo expulsado do país.

Boatos

Ao longo dos anos, foram criadas diversas teorias sobre a permanência de Cukurs no Brasil. Uma delas é que o ex-militar recebeu proteção especial do Departamento de Ordem e Política Social (DOPS), órgão policial da ditadura em São Paulo. Mas isso não explicava tudo, na avaliação do pesquisador.

Bruno Leal explica que Cukurs ficou preocupado com sua própria segurança e procurou o órgão policial na capital paulista, onde ele morava após sofrer sanções no Rio de Janeiro: “Ele fala: ‘olha, estão sendo publicadas inverdades sobre mim, acusações falsas e eu preciso de proteção da polícia porque esses agentes israelenses vão fazer alguma coisa comigo. Vão me sequestrar e vão me levar para Israel, assim como fizeram com a vítima.’ E então o DOPS destacou, de fato, dois policiais para fazer a sua guarda e, principalmente, a de sua casa.”

Entretanto, o professor acrescenta que isso está muito mais relacionado a uma preocupação do Estado Brasileiro com a sua soberania do que com uma suposta simpatia à ideologia nazista.

Morte de Cukurs

Cukurs foi assassinado em Montevidéu (Uruguai) por agentes israelenses. Bruno Leal diz que o governo brasileiro “não teve o que fazer”. Por outro lado, a imprensa — não só a brasileira — repercutiu intensamente o caso. Até hoje, esse se mantém como o único assassinato conhecido de um militar nazista por agentes da Mossad.

A Interpol passou a investigar a história. “A gente só vem a confirmar que foi realmente a Mossad (que assassinou Cukurs) em 1997, quando o principal agente que atuou no caso escreveu um livro que foi prefaciado por um antigo diretor do Mossad explicando o que foi essa operação em 1964 e 65 para executar Cukurs. Mas nesse momento o governo brasileiro não cumpriu qualquer papel significativo.”

O pesquisador estuda, neste momento, um caso de um francês que veio paralelamente ao Cukurs ao Brasil. “Há indícios de que esse sujeito contava com uma rede muito mais ramificada e até com alguns setores das autoridades brasileiras. Mas no caso Cukurs isso não aparece de forma evidente.”

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