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Brasil

Maior número de laqueaduras expõe machismo estrutural nas famílias, avaliam especialistas

Desde a retomada das cirurgias eletivas, já foram realizados 579 cirurgias de laqueadura para mulheres e 233 vasectomias em homens

Redação Jornal de Brasília

19/10/2021 18h36

Foto: Agência Brasil

Fernanda Bittar e Maria Tereza Castro
(Jornal de Brasília / Agência de Notícias UniCEUB)

O machismo estrutural na sociedade brasileira está na raiz de uma responsabilização maior para as mulheres quando o assunto é o planejamento familiar. A avaliação é de profissionais da saúde e também do direito diante da imposição de que elas deveriam, sob esse olhar patriarcal, tomar providências para se evitar uma gravidez indesejada.

Essa distinção pode ser mensurada. De acordo com a Secretaria de Saúde do Distrito Federal, desde a retomada das cirurgias eletivas, em novembro do ano passado, já foram realizados 579 cirurgias de laqueadura para mulheres e 233 procedimentos de vasectomia nos homens.

“A reprodução humana é tida como responsabilidade da mulher, o que resulta numa liberalização do papel do homem com a reprodução humana”, afirma a advogada Vera Lúcia Araújo, ativista pelos direitos humanos. Segundo ela, se tudo o que a lei assegura fosse cumprido, a carga pesada do controle do planejamento familiar não recairia tanto sobre a mulher.

Foto: Secretaria da Saúde da Bahia

Legislação

A especialista tem razão. Está na constituição de 1988 que o planejamento familiar deve garantir “direitos iguais de constituição, limitação ou aumento da prole pela mulher, pelo homem ou pelo casal”.

Esse serviço orienta-se por ações preventivas e educativas, com a garantia de acesso a informações para a regulação da fecundidade. De acordo com a Lei nº 9263, de 1996, o Estado deve oferecer aos homens e às mulheres informação, prevenção e acesso aos métodos contraceptivos. Além disso, cabe aos organismos científicos reconhecer, regularizar e disponibilizar esses mecanismos nos sistemas de saúde.

A advogada afirma que, no dispositivo constitucional, os direitos sexuais e reprodutivos são distribuídos de maneira igualitária, juntamente com os papéis e responsabilidades, porém isso é distante da prática.

“O que temos é um país de uma cultura patriarcal arcaica, em que as raízes da escravização são muito fortes e se pronunciam não somente nas relações raciais, como também sociais, assim, o papel social da mulher é reduzido”, explica.

Ela explica que esse debate envolve uma série de questões e tem um cunho cultural, religioso e educacional. “Há um número crescente de mulheres chefes de família, nem sempre por escolha. Muitas vezes, essa carga se inicia com a gravidez solo, porque os homens se desresponsabilizam e as mulheres acabam arcando com essa responsabilidade”

Sobre a desigualdade entre os procedimentos de laqueadura e vasectomia, Vera Lúcia acredita que a motivação é a maior recorrência e preocupação das mulheres no sistema de saúde. Dessa forma, elas se submetem mais facilmente a intervenções cirúrgicas e ficam mais suscetíveis a complicações e eventuais casos de imprudência, violência ou negligência médica.

Planejamento reprodutivo

De acordo com a médica Denise O’Campos, especialista em saúde familiar da Secretaria de Saúde do Distrito Federal (SES-DF), o planejamento reprodutivo é algo fundamental para todos. “É um trabalho de conscientização das pessoas em relação ao seu desejo em ter filhos ou não, apresentando os direitos sexuais e reprodutivos”, explica a especialista.

Além disso, o médico da família informa o paciente acerca dos métodos contraceptivos, para evitar gravidez indesejada e problemas de saúde durante a gestação e o parto.

Segundo a profissional,  o método contraceptivo deve ser específico para cada mulher, uma vez que elas têm suas particularidades, questões biológicas, psicossociais e  culturais que precisam ser analisadas.

Os cuidados reprodutivos são graduais e mudam de acordo com a fase da vida. A maioria dos métodos contraceptivos que são indicados para a mulher são o anticoncepcional oral, o injetável e o dispositivo intrauterino (DIU). Também existem outros métodos como os de longa permanência – implante e os definitivos – laqueadura e vasectomia.

Entenda o que é laqueadura e vasectomia

Os métodos definitivos, tanto a laqueadura quanto a vasectomia, são procedimentos cirúrgicos que repercutem de formas diferentes para mulheres e homens. Desde o tipo de cirurgia até o pós-operatório e complicações, são notáveis as distinções entre essas técnicas. 

Segundo a médica ginecologista Cibele Maria Braga Bezerra Café, o procedimento de laqueadura tubária é uma cirurgia que consiste em identificar as trompas uterinas dentro da cavidade abdominal, cortá-las e afastá-las, e em seguida suturá-las, realizando a hemostasia (processo fisiológico para manter o sangue fluído no interior do vaso sanguíneo).

Essa operação pode ser feita por videolaparoscopia, técnica que utiliza o auxílio de uma câmera, ou da forma convencional, a chamada cirurgia aberta. A especialista também explica que esse procedimento pode ser feito durante o parto. Para isso, é necessária a anestesia geral ou local e  deve ser realizada em ambiente hospitalar, com a paciente internada. 

Já a vasectomia é um procedimento menos invasivo e mais simples que a laqueadura, segundo o médico urologista Homero Ribeiro de Paula Filho. Esse método consiste em uma pequena cirurgia na bolsa escrotal, realizando o bloqueio dos canais deferentes, para que o homem não tenha espermatozoides em sua ejaculação, assim, evitando uma gravidez. “A vasectomia é um meio simples, seguro e eficaz de contracepção permanente ou controle de natalidade”, afirma o especialista. 

Arte: Paulo Nobrega

Segundo a ginecologista, além de ser um método extremamente invasivo, por ser uma cirurgia que invade a cavidade abdominal, a laqueadura tubária é irreversível. Ao contrário da vasectomia, que é feita com um ou dois pequenos cortes, com cerca de 1,0 cm cada e é reversível.

“Os canais deferentes podem ser reconectados cirurgicamente em um procedimento denominado reversão de vasectomia, com taxa de sucesso variável”, explica o urologista. 


Recuperação e riscos

Para a laqueadura, necessita-se de no mínimo 24 horas de internação hospitalar, e o pós-operatório pode chegar a um mês, isso caso não aconteçam complicações. Já no caso da vasectomia, a maioria dos homens vão para casa imediatamente após o procedimento, e boa parte se recupera totalmente em menos de 10 dias. 

Em relação às complicações, nas mulheres, as mais frequentes são: infecção no pós-operatório, hemorragia durante a cirurgia e no pós-operatório, dores e aderências futuras. Enquanto nos homens, as complicações são relativamente incomuns e não graves, incluindo inchaço, hematoma, sangue no sêmen, infecção, leve desconforto ou dor. 

Dessa maneira, os riscos do procedimento na laqueadura são maiores que na vasectomia, podendo em casos extremos levar à morte. Em contrapartida, segundo o  Homero Ribeiro, a vasectomia tem baixíssima taxa de mortalidade. “Em países industrializados, é de 0,1 por 100.000 procedimentos, principalmente relacionados à infecções graves”, completa.

Tabus

O urologista também concorda que o maior número de laqueaduras pode estar relacionado com o fato das mulheres assumirem mais o papel do planejamento familiar do que os homens. Ele pondera que, entre 2011 e 2017, houve um aumento de 42% na realização dessas cirurgias em homens. Um dos motivos seria o aspecto econômico, conforme avalia.

Já a médica Cibele Maria Café entende que exista um tabu em torno dos métodos contraceptivos direcionados aos homens. “Ao meu ver, a principal causa disso, é, principalmente, a desinformação e o machismo na nossa sociedade”, acrescenta. Ainda é muito comum a crença de que a vasectomia pode afetar o desempenho sexual masculino, porém, essa é uma informação falsa.

Foto: Rodrigo Viana/Senado Federal

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