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Brasil

Garimpo tem mais estrutura do que saúde, diz profissional que atende os yanomamis

“As máquinas fazem grandes e vários lagos para tirar o minério, que viram casas para multiplicação de protozoários”, afirma Tony Gino Rodrigues

Redação Jornal de Brasília

19/05/2021 8h36

Fabiano Maisonnave
Manaus-AM

Caminhadas de dezenas de quilômetros pela floresta com medicamentos e equipamentos em quantidade insuficiente, equipes reduzidas, viagens em pequenos aviões, risco de malária e um terço do salário para comprar a comida levada ao campo.

Essa é a rotina do assistente de enfermagem Tony Gino Rodrigues, 39, funcionário do Dsei (Distrito Sanitário Especial) Yanomami, do Ministério da Saúde, responsável pelo atendimento de 28 mil indígenas espalhados por 106 mil km².
Localizada entre o Amazonas e Roraima, a Terra Indígena Yanomami é pouco maior do que Pernambuco. Muitas regiões só são acessíveis por via aérea. Hoje, está invadida por cerca de 20 mil garimpeiros ilegais, segundo estimativa da associação Hutukara.

O assistente de enfermagem Tony Gino Rodrigues (abrigo vermelho) pesa criança yanomami na comunidade Pako, a 5 km do polo base Missão Catrimani, na Indígena do povo macuxi, Rodrigues trabalha há dez anos no Dsei Yanomami. Em abril, ele integrava a equipe que localizou uma criança de oito anos com quadro de desnutrição severa, malária falciparum, anemia e pneumonia. Pesava 12,5 kg. A sua foto expôs as deficiências no atendimento à saúde dos yanomamis.

Para o assistente de enfermagem, essa criança, atualmente em tratamento em Boa Vista (RR), não é um caso isolado e reflete as condições de trabalho cada vez piores. “Na medida em que o usuário sofre, o trabalhador também sofre”, disse à reportagem. “Há insuficiência de medicação, de mão de obra e de condições de trabalho.”

A criança vive em uma das aldeias da comunidade Missão Catrimani, que conta com uma Unidade Básica de Saúde (UBS) para atender cerca de 900 indígenas. Para chegar a algumas dessas aldeias, é preciso caminhar por dezenas de quilômetros pela floresta ou viajar de barco por algumas horas.

“Na UBS Missão Catrimani, era para termos nove técnicos de enfermagem, dois gestores enfermeiros e dois guardas de endemias, para a prevenção da malária”, afirma Rodrigues. “Em média, ficam dois, quatro técnicos de enfermagem, mas já chegou a ficar apenas um técnico.”

Ao contrário da cidade, as UBS do Dsei Yanomami admitem internação, mas não existe fornecimento de comida. Por isso, muitas vezes, a alimentação dos doentes vem do rancho trazido pelos funcionários de saúde para consumo próprio –o Ministério da Saúde não fornece alimentação para eles.

Os funcionários do Dsei também fornecem a comida para os yanomamis que os acompanham em missões fora do polo-base, onde está a UBS, realizadas por meio de longas caminhadas pela floresta ou de barco.

Rodrigues diz que gasta pelo menos R$ 800 com alimentos em uma missão, de um salário de R$ 2.580.

“O trabalhador de saúde indígena está pagando para trabalhar. Um terço do meu salário vai para sustentar a saúde indígena. Além de levar a nossa alimentação, temos de fornecer a quem nos acompanha na floresta. Ninguém faz saúde lá dentro sem os indígenas.”

“Além disso, quem cozinha é a gente. Isso quando tem fogão. Na Missão Catrimani, quem comprou o fogão foi uma trabalhadora. Ela teve de fazer um requerimento de doação para o Dsei. Ainda tem a burocracia”, relata.

“Os garimpeiros têm muito mais suporte do que a saúde indígena”, compara, em alusão a vilas com comércio, pista de pouso e energia de gerador. Ele diz que colegas já tiveram de usar a internet de um garimpo ilegal para pedir remoção aérea e que o avião precisou descer em uma pista clandestina para realizar o resgate.

Sobre os medicamentos, o técnico de enfermagem diz que há falta de artemeter e de artesunato, usados contra a malária falciparum, a forma mais grave da doença, muitas vezes letal. Três colegas de Rodrigues morreram após contrair a doença em campo.

“Temos um alto índice de malária falciparum. E também já está se arrastando para a malária mista”, afirma Rodrigues, sobre casos em que o doente contraem ao mesmo tempo as duas variedades –a outra é a vivax.

O garimpo ajuda na proliferação, diz ele. “As máquinas fazem grandes e vários lagos para tirar o minério, que viram casas para multiplicação de protozoários.”

Para o assistente de enfermagem, as condições de trabalho têm piorado desde que entrou no Dsei. Ele afirma que, antes, havia fornecimento de comida e de kit para os yanomamis que acompanham os profissionais de saúde, com fornecimento de materiais como facão e pilha.

De boa notícia, Rodrigues citou a campanha de vacinação contra a Covid-19, que já chegou à maioria dos yanomamis em idade para vacinação, contribuindo para controlar a epidemia dentro do território.

Em nota na semana passada, o Ministério da Saúde diz que o Dsei Yanomami possui medicamentos suficientes para atender à população e que dispõe de 734 profissionais. Além disso, contratou 16 técnicos de enfermagem, 5 agentes de endemias e 1 farmacêutico para atuar diretamente no combate à malária.

Desnutrição Em seu trabalho de campo mais recente, Rodrigues passou 30 dias na Missão Catrimani. A criança desnutrida foi encontrada nessa época, em uma missão em que sua equipe de saúde percorreu 37 km a pé, pela floresta, em seis dias.

“Ela conseguia comer um pouquinho, ficar de pé. Mas, assim como há insuficiência de medicação para tratar a malária falciparum, também há insuficiência para tratamento do programa de verminose. São várias questões sequenciadas que acarretam numa desnutrição grave.”

“Lá tem roça, mas, quando alguém tem outras patologias, uma quantidade de vermes muito grande, fica anêmico. Ela ficava de pé na força de Deus. Mas a fragilidade dela era como na foto, anatomia pura. Eu conseguia contar as costelas dela. Algumas crianças já estão caminhando para o mesmo quadro.”

Rodrigues, que aprendeu a falar yanomami, conversou com os pais sobre a necessidade de remoção. “Tem de ser muito conversado, muito bem explicado. Muitos deles não voaram de avião e têm medo de sair do seu mundo.”

Em missões assim, Rodrigues e outros profissionais precisam levar equipamento, caminhar sob chuva, atravessar pântanos e cruzar igarapés equilibrando-se sobre troncos. Em muitas aldeias, se hospedam e atendem nas malocas das famílias, já que não há uma estrutura específica para a saúde.

“A gente fez um juramento para salvar vidas, mas a gente não faz milagre. Só podemos salvar vidas onde nos dão condições. E às vezes, perdemos nossas próprias vidas salvando vidas”, afirma.

As informações são da Folhapress

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