Menu
Brasil

Estiagem começa com recordes de queimadas no Cerrado

Especialistas apontam riscos do desmatamento e focos de incêndio intencional até para o abastecimento hídrico do país

Olavo David Neto

05/07/2021 6h09

Foto: Lucas Neiva/ Jornal de Brasília

A troca no comando do Ministério do Meio Ambiente (MMA) já movimentou o ordenamento para o tema no Brasil. Na última terça-feira (29), a União emitiu o Decreto 10.735/2021, que proíbe por quatro meses o emprego de fogo em florestas e demais formas de vegetação. A medida é uma resposta do governo à explosão de focos de incêndio na Amazônia e, sobretudo, no Cerrado.

De acordo com mapeamento do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), foram 222.797 focos de incêndio em 2020, aumento de quase 13% de aumento se comparado aos 197.632 incêndios do ano anterior. Os números do Inpe apontam uma situação ainda mais dramática na análise do Cerrado. Cerca de 870 km² foram atingidos pelo fogo entre 1º e 27 de maio, cerca de 510 km² a mais que no mesmo mês de 2020.

Diretor do Instituto Cerrados (IC), organização da sociedade civil dedicada à salvaguarda do bioma, Yuri Salmona explica que não há um único fator a ser considerado pelo aumento nas queimadas. “As condições climáticas são mais propícias a incêndio [neste período de seca, mais ainda entre setembro e outubro]. Apesar da interação natural do bioma com o fogo, em especial durante o período de chuva, quando eventualmente, um raio pode provocá-lo. A principal origem do fogo no Cerrado nos períodos de seca, são os incêndios não controlados, provocados por ação humana, geralmente associados a desmatamento.

Os efeitos tanto da queimada quanto do desmatamento se fazem sentir para além das fronteiras do Cerrado. Conforme Salmona, é possível vulnerabilizar o Pantanal, por exemplo, apenas mexendo no bioma típico do Brasil Central. “O Pantanal é a maior planície alagada do mundo e a maioria das cabeceiras estão no Cerrado; essa área é fundamental para o abastecimento dessa planície alagada”, professora o pesquisador. “Com impacto no Cerrado, os níveis de água no Pantanal são afetados e deixam essas áreas mais vulneráveis a pegar fogo”, completa.

Além disso tudo, o desmatamento de uma região tipicamente seca traz ainda mais insegurança hídrica. Segundo Salmona e Mariana Napolitano, gerente de Ciências do WWF-Brasil, a própria concepção do Cerrado é voltada à geração de água. “As raízes profundas, típicas da vegetação do bioma, infiltram a água da chuva nos reservatórios subterrâneos naturais, também conhecidos como aquíferos e lençóis freáticos”, explica. Assim, ao se desmatar a região, a água das chuvas não consegue permear o solo e escoa pela superfície.

Napolitano explana ainda o efeito cascata que a situação representa. “Com isso, os rios enchem muito rapidamente durante a estação chuvosa e depois também secam muito rapidamente”, acrescenta, não sem lembrar que “cerca de 40% da água doce do Brasil é proveniente do Cerrado, que abriga as nascentes de oito das 12 bacias hidrográficas brasileiras.”

Legislação

A luta jurídico-legal pela preservação do Cerrado tem longa data, mas passou a andar a partir de 2010. Conforme explica Mariana, o expressivo aumento na perda de massa viva do bioma levaram a União a lançar o Plano de Ação para Prevenção e Controle do Desmatamento e das Queimadas no Cerrado (PPCerrado), iniciativa semelhante à criada para a Amazônia. “Apesar de louvável, a iniciativa no Cerrado foi menos eficaz, tendo sido politicamente esvaziada ao longo do tempo, partindo da ideia de que o bioma Cerrado teria menor valor e importância socioecológica do que a Amazônia”, considera Napolitano. Assim, abriu-se caminho para a boiada.

Somado ao enfraquecimento do PPCerrado, a assunção ao Planalto de Michel Temer (MDB) e posteriormente Jair Bolsonaro (sem partido) gerou mais um baque na preservação do bioma, segundo Napolitano. “Os aumentos no desmatamento e queimadas em 2017, 2019 e 2020 refletem na prática os discursos oficiais de incentivo à criminalidade no campo, à grilagem, às invasões de terras e violações de direitos dos povos indígenas e outras comunidades tradicionais, tanto na Amazônia como no Cerrado”, comenta.

Conforme Salmona, cerca de 47% – ou a porção mais ao sul do bioma – já foi ocupada, restando fragmentos mais preservados na região do Matopiba, acrônimo dos estados: Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia. Nessas últimas décadas, eles são alvo da expansão das fronteiras agrícolas, sobretudo da soja. Coordenador do Programa de Monitoramento da Amazônia e Demais Biomas do Inpe, Cláudio Almeida corrobora com mais dados. “O que a gente percebe no mapeamento é que a predominância dos desmatamentos no Cerrado é de fronteira agrícola”, destaca. “De janeiro a junho deste ano, o desmatamento do Cerrado no Maranhão e na Bahia representaram metade do desmatamento total do bioma”, ressalta Almeida.

Na seara legislativa, dois Projetos de Lei (PLs) ameaçam a preservação do que ainda resta do Cerrado. Apresentado em 2004, o PL 3.729 foi aprovado já em 2019 e representa, de acordo com os especialistas consultados pela reportagem, a flexibilização do licenciamento ambiental. O PL 510/2021, apelidado de “PL da Grilagem” por enfraquecer o combate à ocupação ilegal da terra e pode reconhecer posse e usufruto para quem se apossou indevidamente de terras produtivas, também é visto com grande preocupação por Salmona.

Ainda assim, ele mantém a esperança em alta, sobretudo em iniciativas desenvolvidas pelo IC, como a criação de Reservas Privadas de Patrimônio Natural (RPPN), por meio das quais proprietários rurais podem transformar seus domínios em santuários de preservação. “Estamos chegando em 27 criadas”, orgulha-se Yuri. “A partir do momento em que desburocratizar o processo de criação, e ampliar os beneficios aos proprietários, a gente pode duplicar as áreas protegidas no Brasil em cinco anos”, aponta.

Cenário no DF é melhor, mas não tranquilo

A chegada da estiagem acelera a combustão, intencional ou espontânea, da vegetação no Planalto Central. No que diz respeito somente ao Distrito Federal, o Corpo de Bombeiros Militar (CBM-DF) registrou 503 ocorrências ligadas a incêndio florestal neste ano. Na média, são 83,3 ocorrências por mês, enquanto os números absolutos apontam a importância do cuidado para com o bioma neste período. Maio e os 19 primeiros dias de junho acumulam 488 chamados à corporação por fogo em área verde, ou 97% do total registrado em 2021.

No portal do CBM foram registradas as ocorrências dadas até sábado (19), e, mesmo assim, os números deste período lideram as estatísticas no DF. No ano passado, as ocorrências de maio se limitaram a 24, enquanto junho registrou 824 chamados. Ainda que represente o auge da mais recente crise hídrica da capital, o ano de 2017 representou o período de menor acionamento do Corpo de Bombeiros para focos de incêndio em matas: foram 28 no quinto mês, com 305 chamados nos 30 dias seguintes.

Salmona aponta ainda que nem todas as queimadas são prejudiciais. “ fala endossada pelas respostas de Mariana. “O fogo utilizado de forma planejada e controlada pode ser um importante elemento para manejo da vegetação, para evitar que incêndios de grandes proporções ocorram no auge da seca”, diz a gestora do WWF-Brasil. De qualquer forma, fica a necessidade de cuidar do bioma, que existem e devem superar o momento complicado pelo qual passa o ambientalismo nacional. “Não é porque a gente tem um contexto complicado que as soluções pararam de acontecer. A gente precisa se aglutinar, fortalecer. Especificamente em torno das alternativas de proteção, e de fortalecimento de monitoramento”, finaliza Yuri.

Saiba mais

  • Coordenador do Programa de Monitoramento da Amazônia e Demais Biomas do Inpe, Cláudio Almeida alertou a reportagem sobre o risco de se encerrar o monitoramento feito no Cerrado.
  • De acordo com ele, o orçamento para realizar as atividades no bioma vem de uma parceria com o Banco Mundial, mas se encerra em agosto. O Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI) disse buscar recursos para manter o programa de pé.
  • Caso não haja novos financiadores, as equipes responsáveis pela observação de avanço do desmatamento e das queimadas no Cerrado serão desligadas a partir de setembro.
  • O desligamento do quadro de funcionários partiria das áreas mais específicas, como os do monitoramento diário, para as mais gerais. O objetivo seria chegar a dezembro sem pendências, já que cessa, também, o fluxo de verba para o instituto.

    Você também pode gostar

    Assine nossa newsletter e
    mantenha-se bem informado