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Trio vaga por uma São Paulo pandêmica em filme

No caso da Berlinale, o carioca criado em São José dos Campos, no interior paulista, participa da mostra Forum, reservada a filmes de caráter experimental. “Três Tigres Tristes” se passa em algum período indeterminado da pandemia, em que três amigos fazem uma jornada de autodescoberta pelas ruas de São Paulo.

FolhaPress

15/02/2022 17h01

Isabella Pereira e Jonata Vieira na cena do filme ‘Três Tigres Tristes’, dirigido por Gustavo Vinagre e exibido no Festival de Berlim 2022|Cris Lyra|Divulgação

Nos últimos quatro anos, o diretor Gustavo Vinagre teve três longas exibidos no Festival de Berlim. A marca se soma a outra, que o torna um cineasta peculiar no cenário brasileiro –só nos últimos sete meses, enquanto o audiovisual penava com as restrições da pandemia e da política cultural do governo Bolsonaro, Vinagre conseguiu lançar três longas, todos exibidos em eventos importantes do calendário cinematográfico.


“Isso tem muito desse meu método de trabalho, de ir filmando e desenvolver ideias paralelamente, prevendo que fazer filmes depende de um tempo único”, diz Vinagre. “Trabalho com ideias tanto para filmes que dependem de dinheiro quanto para outros que dependem de ideias mais imediatas, que eu quero fazer logo. Gosto de provar coisas.”


No caso da Berlinale, o carioca criado em São José dos Campos, no interior paulista, participa da mostra Forum, reservada a filmes de caráter experimental. “Três Tigres Tristes” se passa em algum período indeterminado da pandemia, em que três amigos fazem uma jornada de autodescoberta pelas ruas de São Paulo.


“A gênese veio dessas personagens, um artista que estava sofrendo pela morte do namorado, outro que era uma drag queen soropositiva e outro que era uma menina trans obcecada por passar no vestibular”, conta Gustavo Vinagre.


Mas o roteiro, que nasceu em 2016, passou por diversas alterações –a inclusão do contexto pandêmico, por exemplo, surgiu por necessidade logística. “Não fazia sentido fazer um filme ‘de época’ ou futurista, em que a Covid não existisse”, diz. “O filme foi todo feito nas ruas de São Paulo, e eu sabia que não ia poder fingir que as pessoas não usavam máscaras. Então decidi abraçar a pandemia e transformar em uma outra coisa.”


É curioso que o contexto da Covid tenha surgido só no fim, porque o longa parece estreitamente conectado aos efeitos de um mundo pandêmico.


Na trama, vemos Pedro, que desde o suicídio do namorado ganha a vida com lives e programas sexuais com homens mais velhos, e sua colega de apartamento Isabella, desiludida pelo adiamento do Enem. A visita do interiorano Jonata, que vai a São Paulo para testar sua carga viral de HIV, resulta em caminhadas do trio pelas ruas.


O filme tem um tom lúdico, até pueril, como se fosse uma fábula iniciática. Quando os protagonistas perambulam pelas ruas, a capital paulista de repente fica tomada por uma atmosfera de magia, e as imagens são invadidas por sons saídos de vídeo games. Apesar de serem pessoas que sofrem questões sociais muito sérias, os protagonistas parecem preservados em um mundo ainda dominado pela candura –o longa, aliás, é de uma fofura pouco habitual na carreira de Vinagre.


“Eu sempre quis que o filme tivesse uma aura de inocência, um pouco infantil, embora tenha coisas muito pesadas também”, afirma o diretor.


Objetos inanimados ganham voz –as xícaras gemem de alegria quando alguém despeja chá quente dentro delas, e pãezinhos japoneses choram quando são repartidos, antes de serem devorados.


A certa altura, a narrativa é suspensa, e uma sequência musical bem extensa –um pouco até demais– de natureza onírica, talvez lisérgica, faz desejos dos protagonistas ganharem materialidade.


O filme, ali, entra em uma realidade paralela, mais sexualizada, com vários personagens de repente num universo cujas regras são distintas.


Vinagre nunca se preocupou em criar uma obra que o tornasse conhecido como um autor, ou seja, um artista que repete sempre temas ou uma mesma estética a cada novo trabalho. Prefere a variedade.


“Essa coisa de fazer muitos filmes me liberta de me apegar a um formato específico, ou de ter uma marca de ‘autor’ que seja reconhecível. Então eu gosto de provar outros tipos de narrativa”, ele diz.


Seu curta mais famoso, “Nova Dubai”, de 2014, não poupa em cenas de sexo explícito –protagonizadas inclusive por ele próprio. Entre 2018 e 2020, lançou uma espécie de trilogia, com curiosos documentários sobre personalidades que falam de si para a câmera, em um jogo em que nunca se sabe até que ponto o que está sendo mostrado é real ou uma performance de um roteiro previamente escrito –”Lembro Mais dos Corvos”, “A Rosa Azul de Novalis” e “Vil, Má”, estes dois últimos também exibidos em Berlim.


Seus dois longas de 2021 são também muito diferentes entre si –o ultraexperimental “Desaprender a Dormir”, codirigido por Caetano Gotardo, e o documentário “Deus Tem Aids”, com codireção de Fabio Leal, sobre pessoas com HIV que tentam relatar a normalidade de suas vidas, apesar do preconceito.


Em sua filmografia, “Três Tigres Tristes” talvez seja seu filme mais comercial, apesar da constante experimentação formal. Há, ali, apesar da pureza, uma reflexão sobre o Brasil pandêmico e bolsonarista.


O título é acima de tudo uma maneira poética de se referir a três personagens que precisam lutar com garra de felinos para sobreviver, ainda que estejam tomados por uma melancolia que os deixa com pouca –ou nenhuma– certeza sobre o futuro.


Na disputa pelo Urso de Ouro, Berlim teve ainda um de seus filmes mais polêmicos.


“Un Été Comme Ça”, do canadense Denis Côté, fala de três ninfomaníacas que participam de um experimento. Há uma inegável forma exploratória no modo como o diretor apresenta a condição sexual das personagens, mas o filme também convida o espectador a refletir sobre o quanto a hiper-sexualidade é de fato degradante ou se o nosso olhar sobre a mulher que se entrega ao gozo é que é carregado de preconceitos.


Mesmo colhendo reações bem negativas, é até o momento um dos longas mais corajosos desta Berlinale.

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