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Cinema

‘I Heard It Through the Grapevine’ mostra lado sóbrio de James Baldwin

Diante de cineastas brancos, o escritor demonstra hostilidade, e não é pouca. No documentário de Dick Fontaine, ele está entre os seu

FolhaPress

05/06/2023 15h48

Foto: Reprodução

Inácio Araujo

É possível começar por uma bela imagem: a frase de Thomas Jefferson gravada a mármore em letras gigantescas na entrada solene da corte de justiça de Birmingham, onde Jefferson preconiza tratamento igual para todos.

No documentário de Dick Fontaine, “I Heard it Through the Grapevine”, a frase é mais que irônica: lida por negros diante do tribunal de um estado como o Alabama, parece mesmo um sarcasmo.

Ali, afinal, os negros nunca tiveram tratamento igual antes que Lyndon Johnson assinasse a Lei dos Direitos Civis, em 1964, e seu complemento, em 1968. E ao que parece nem depois.

A questão que James Baldwin e seus colegas de movimento antissegregacionista propõem é: alguma coisa terá de fato mudado entre os anos 1960 e 1980? É em 1980, na virada da década que seria marcada pela presidência de Ronald Reagan, que o escritor realiza seu périplo por algumas grandes cidades do sul: Atlanta, Little Rock, New Orleans, Miami.

Sua pergunta é se a situação de racismo, injustiça, preconceito e intolerância terá mudado. A resposta é desanimadora: “Voltamos ao mesmo ponto, falamos dos mesmos problemas”.

Ao lado de Baldwin estão companheiros de lutas antigas, sobreviventes dos anos 1960. Pastores, ativistas, intelectuais. A hábil montagem alterna as imagens do passado e do presente. Não é raro ver os negros sendo presos, espancados, praticamente destituídos de sua humanidade.

E discriminados, sempre. Em branco e preto ou colorido, antes ou depois das leis de direitos civis.

James Baldwin entende de discriminação. Um outro documentário, “Meeting the Man: James Baldwin in Paris”, de 1970, o encontra no exílio parisiense, aonde foi para fugir, seja para se distanciar do racismo americano, seja da discriminação aos gays como ele. Não que Paris seja o paraíso, mas perto do que viveu nos EUA até poderia parecer.

Diante de cineastas brancos, o escritor demonstra hostilidade, e não é pouca. No documentário de Dick Fontaine, ele está entre os seus.

A sexualidade é uma questão bem lateral. Os antigos combatentes continuam a combater, a discutir, a ensinar às crianças, mesmo porque não parece existir alternativa. As manifestações continuam a ser reprimidas com violência, os cachorros dos policiais continuam a latir nas ruas. Mas algo mudou, ele comenta, porque algo sempre muda.

Por exemplo: o memorial dedicado a Martin Luther King em Atlanta, Georgia. Baldwin vê aquilo como uma total irrelevância. Dirá depois que Luther King virou a maior indústria da cidade.

No contato com os antigos companheiros, sobra espaço sempre para algum humor, que por sinal não suaviza o tom crítico: o Ocidente, dirá, torna uma luta, uma paixão, irrelevantes, inúteis. Existe integração?
Sim, a “integração fria” é “a pior coisa”.

O périplo pelo Sul pode visitar igrejas, monumentos, tempos da música, ruínas de antigas batalhas, mas termina necessariamente em Miami. Mais precisamente, no mercado onde se comercializavam os escravizados. Os velhos e os jovens em locais diferentes, se bem entendi.

Algo, em todo caso, apagado cuidadosamente: transformado em shopping center ou algo do tipo.
Mas a dor dos negros dos EUA, vista por Baldwin, não se restringe aos estados abertamente racistas: “O espírito do Sul é o espírito da América”, resume.

Baldwin morreu em 1987, em Saint Paul de Vence, França, cidade famosa por seus pintores, escritores, atores. Não teve tempo para saber se estava certo em seu diagnóstico radical. “A doutrina as supremacia branca, base do Ocidente, teve sua hora. Acabou.”

Também não soube, claro, dos acontecimentos mais recentes. Do ignóbil assassinato de George Floyd, sufocado por policiais em 2020, por exemplo. O filme, terminado em 1982, mantém, no entanto, espantosa atualidade. Afinal, voltamos ao mesmo ponto, como diz Baldwin, falamos dos mesmos problemas.

E o Brasil nessa história? Entre nós algo parece ter mudado nos últimos anos: nos reconhecemos enfim um país racista. Algo sempre muda, como se diz neste documentário de Dick Fontaine, tão militante quanto o próprio Baldwin.

I HEARD IT THROUGH THE GRAPEVINE
Avalição Muito Bom
Quando Mostra Ecofalante: Qui. (8), às 21h, e sáb. (10), às 19h, no Espaço Itaú Augusta
Preço Grátis
Produção EUA, 1982
Direção Dick Fontaine e Pat Hartley


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