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Brasília

Após quase ser morto, jovem se muda do DF por medo

Vítima, que sofreu 17 perfurações e teve o cabelo cortado enquanto ouvia gritos de ‘bichinha’ e ‘mulherzinha’, teme que agressores fiquem impunes. “Enquanto eles estão livres, eu estou aqui, trancado”

Willian Matos

31/10/2019 12h31

Atualizada 01/11/2019 18h24

Willian Matos
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O estudante de odontologia Felipe Augusto Correia Milanez, 23 anos, não sabe o que é viver em paz há cerca de três semanas. Na madrugada do dia 7 de outubro, o corpo dele foi perfurado 17 vezes por golpes de faca. Os suspeitos do crime (pelo menos 12 pessoas) o cercaram na Rua do Lago, em Brazlândia, na saída de um pub. O jovem foi esfaqueado e agredido aos gritos de “bichinha”, “mulherzinha”, “arrombado”, “vamos matar esse viado”, entre outras ofensas.

Ao Jornal de Brasília, Felipe afirma que está de mudança do Distrito Federal. “Eu tenho que ir embora, né?! Tanto por questões de segurança, quanto pela minha saúde mental”, disse. O jovem acredita que, pelo fato de alguns dos agressores serem menores de idade, a punição a eles será branda, caso haja.

“Não vai acontecer nada com eles [agressores], por isso que eles pintam e bordam.”

A mente de Felipe ainda remete ao terror vivido na madrugada do dia 7. O jovem fez fotos pós-agressões, mas ainda não tem forças para divulgá-las. Ele sente que crimes de homofobia ainda passam impunes, permitindo que o fato de ser homossexual dê margem à covardia da gangue que o agrediu e tantas outras espalhadas pelo país. “A minha dor física não chega nem perto da psicológica. O físico eu consigo sustentar, mas o psicológico está me matando. Medo, insegurança, covardia, impunidade… envolve muitas coisas”, explica.

“Estou sendo tratado como prisioneiro. Enquanto eles [os agressores] estão livres, contando vantagem, vivendo a vida deles, se divertindo, eu estou aqui, trancado em uma casa.”

“Menos um viado no mundo”

Além das facadas e das duras ofensas, Felipe relata que teve o cabelo cortado à força pelos suspeitos. “Eles cortaram meu cabelo na faca. Ele era grande, e agora está super curto”, explica. O estudante cita que, enquanto realizavam as agressões, os homens o ameaçavam de morte a todo o momento. “Eles falavam: ‘agora vai ser menos um viado no mundo’”, relembra.

Tendo como base o fato de a estrutura capilar fazer parte da identidade de todo ser humano, o estudante lamenta a tortura sofrida.

“Acho que o [corte do] cabelo é pior do que qualquer outra coisa. Se você vir uma foto minha de semana retrasada e vir uma foto de hoje, você não me reconhece. Eu tô sem barba e, como os remédios para dor estão fazendo meus pêlos caírem, estou praticamente sem cabelo.”

Detalhes das agressões

Antes de ir ao pub, ainda no dia 6 de outubro, Felipe compareceu a uma festa beneficente em outro local de Brazlândia, na qual ele apenas ajudou doando alimentos — o jovem não é promoter e não organizou o evento, conforme veiculado por alguns sites e portais anteriormente. Na Rua do Lago, por volta de 2h já do dia 7, os agressores abordaram Felipe e um amigo dele, heterossexual. Após o primeiro golpe de faca, o amigo disse: “Felipe, corre que eu vou resolver”. Mesmo atendendo o pedido e tendo saído correndo, os suspeitos conseguiram alcançar o estudante de odontologia e realizar as agressões.

Apesar de não ter sido esfaqueado, quatro pessoas agrediram o amigo de Felipe. “Ele foi espancado por quatro homens. Eu já estava deitado no chão, com o pessoal me batendo. Quando eu olhava para o lado, via eles pisando no rosto e dando paulada nele”, relembra.

Após sofrer os golpes, Felipe conseguiu engatinhar até um carro que estava parado próximo ao local das agressões. No veículo, ele encontrou um conhecido. Mesmo com os agressores cercando o automóvel e ameaçando quebrar as janelas, o motorista conseguiu arrancar dali e leva-lo ao Hospital Regional de Brazlândia (HRBz).

Mesmo acamado, a vítima seguiu sendo ameaçada. Por volta de 7h, a Polícia Militar do Distrito Federal (PMDF) recebeu uma ligação informando que os suspeitos rondavam a unidade, provavelmente à espera da alta do jovem.

Sair para beber, como nesta foto antiga, não tem sido mais possível. A vida regular do jovem foi interrompida. Foto: arquivo pessoal

No hospital, verificou-se que algumas das facadas atingiram o pulmão de Felipe, sendo necessária drenagem pulmonar. Ele também rompeu alguns dos ligamentos do joelho esquerdo. Além dos golpes no peito, nas costas e nas pernas, o jovem sofreu perfurações na cabeça e nos braços.

Omissão de socorro

Felipe afirma que, na Rua do Lago, havia entre 40 e 50 pessoas no momento da agressão. No entanto, ninguém prestou socorro e nem ligou para a Polícia Militar. “Houve omissão de socorro. A rua tem órgão público, tinha vários vigilantes assistindo, entre 40 e 50 pessoas na hora, mas ninguém ligou para a polícia.”

Rua do Lago vista de cima. Local é um dos pontos de movimento de Brazlândia. Foto: Reprodução/YouTube

Autoridades

A Comissão de Direitos Humanos da Câmara Legislativa do Distrito Federal (CLDF) tem acompanhado o jovem desde o momento em que ele foi agredido. O presidente da comissão, deputado distrital Fábio Felix (Psol-DF), explica que ele e a família estão sendo assistidos em diferentes âmbitos. “A CDH tem acompanhado a família em várias demandas. Primeiro, prezando pela segurança e proteção, em defesa da dignidade do Felipe e da família dele. Segundo, pelo acolhimento”, afirma Felix.

O deputado explica, também, que a comissão tem viabilizado aporte financeiro para que o estudante de odontologia se mude do Distrito Federal. “Conseguimos viabilizar um atendimento psicológico para o Felipe com uma profissional especializada em traumas e situações de crise. Estamos viabilizando junto à delegacia e outros parceiros voluntários um apoio financeiro à família, porque o Felipe vai precisar se deslocar para fora da cidade”, cita. 

Fábio Felix é uma das vozes da comunidade LGBTQI+ na Câmara Legislativa. Foto: Divulgação

Esta ajuda que Fábio menciona veio de um parlamentar em especial, conforme faz questão de lembrar a mãe de Felipe, Jamile Correia, 49. O deputado distrital Eduardo Pedrosa (PTC-DF) comprou passagens de avião para que o jovem pudesse se mudar. “Eduardo é um jovem que se compadeceu com a família. Ele nos deu as passagens tirando dinheiro do próprio bolso”, afirma Jamile. Ele se prontificou a dar todo apoio, mandou a assessoria ir ao hospital para me dar amparo emocional. Depois, ele quem acionou a Comissão de Direitos Humanos”, conclui.

Por fim, Felix alega que, enquanto presidente da Comissão de Direitos Humanos, tem lutado para combater a lgbtfobia no Distrito Federal. “É inexplicável como a sociedade pode produzir uma violência tão grave contra um ser humano simplesmente pelo fato dele amar uma pessoa do mesmo sexo. O caso do Felipe é ainda mais grave, porque ele vai ter que abandonar vínculos pra se proteger. É mais uma prova de que a gente precisa de políticas públicas urgentemente para enfrentar a lgbtfobia na cidade.”

Apesar de acreditar que os agressores — principalmente os menores — ficarão impunes, Felipe agradece o apoio dos policiais da 18ª Delegacia de Polícia (Brazlândia), que investiga o caso. “A Polícia tá sendo um anjo na minha família, não tenho do que reclamar. Estão ajudando bastante.”

O caso está sob segredo de justiça. Até a última atualização desta reportagem, nenhum dos agressores de Felipe havia sido preso.

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