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Brasília

Vivendo em um barraco com a neta, recicladora busca manter a autoestima

Em todos os cantos deste único cômodo da casa, encontram-se sacolas com roupas que ganhou e outras que pretende doar por já não servirem mais

Redação Jornal de Brasília

01/03/2023 21h17

Foto: Maria Cecilia Lima/Agência de Notícias CEUB

Maria Cecilia Lima
(Jornal de Brasília/Agência de Notícias CEUB)

Maurícia Barbosa Nascimento, de 37 anos, mora com a neta na Asa Norte em um barraco que ela mesma construiu com a ajuda de um de seus irmãos há cinco anos. Ela utilizou pedaços de madeira e lona que encontrou pelas ruas.

Dentro dele, tem uma cama de casal com lençol e colcha limpos, alguns travesseiros espalhados, um pequeno armário de madeira de duas portas e uma fruteira de plástico onde guarda desde absorventes que ganhou de doação até peças de roupa que ainda não foram guardadas.

Em todos os cantos deste único cômodo da casa, encontram-se sacolas com roupas que ganhou e outras que pretende doar por já não servirem mais. Do lado de fora, um espelho está pendurado em um prego. Com ele, Maurícia se vê, olha a neta e penteia os cabelos antes de sair para a luta de todos os dias.

A única fonte de energia elétrica do ambiente vem de um fio que foi puxado da propriedade de trás por meio de um buraco no muro. É assim que ela consegue iluminar o ambiente à noite e carregar seu celular.

A rotina consiste em levantar cedo todos os dias, deixar Sophia, sua neta de 5 anos, na escola pública onde conseguiu vaga neste ano e ir trabalhar. Ela leva a menina com um carrinho de supermercado. O sustento de Maurícia é baseado na reciclagem de embalagens plásticas que ela encontra entre as quadras da Asa Norte próximas de onde mora.

Apesar da realidade humilde, ela se preocupa em oferecer um ambiente confortável para que possamos conversar. Pega uma cadeira, cobre o assento com um pedaço de tecido amarelo com rendas brancas e a oferece para que eu me sente, se desculpando por ter apenas um pedaço de ferro como encosto. Para si, não prepara nada. Apenas se senta em uma caixa formada por tiras de madeira daquelas que são usadas para carregar frutas em feiras.

Ali, ela acorda, se arruma, come, sai para trabalhar, volta e descansa desde que chegou por ali. Mesmo assim, ninguém a vê. Ela garante que não recebe auxílio algum do governo e é raro quando alguém passa pela região e lhe oferece alguma doação ou simplesmente um tempo de conversa. São 5 anos em que inúmeros carros passam por ela em uma região nobre da capital do país, mas pouco ou, muitas vezes, nada é feito. Maurícia sente-se sozinha.

Questionada sobre a existência de algum auxílio destinado às pessoas em situação de rua, a Secretaria de Desenvolvimento Humano do Distrito Federal informou que 28 equipes de abordagem social atuam no território do DF, direcionando essas pessoas aos Centros de Referência de Assistência Social (Creas). Segundo o órgão, as equipes oferecem transporte para as unidades socioassistenciais, wi-fi gratuito, além de serviços de proteção básica em casos de vulnerabilidade. Apesar disso, Maurícia segue invisível aos olhos do governo.

Uma mulher simples, mas que se preocupa com a aparência. “Tem dia que eu levanto aqui de manhã, faço minha limpeza de pele e minha maquiagem”. Se é questionada para onde vai, responde “lugar nenhum” e ri, orgulhosa de se cuidar mesmo que outras pessoas a julguem por se encontrar em situação de rua.

Nascida na Bahia, ela, a mãe e 9 irmãos vieram para Brasília quando Maurícia tinha apenas 7 anos. “Quando eu era moleca, me arrumava igual um homem: era bermudão e cabelo pra trás”. Ela demonstra não sentir orgulho dessa fase. “Depois que eu fui ficando mocinha, não tinha autoestima por causa do meu cabelo que é crespo”.

Os filhos

Aos 16 anos, Maurícia engravidou de sua primeira filha. Seus outros dois filhos vieram em sequência. Porém, Maurícia entende que teve complicações psicológicas no pós-parto que afetou sua relação com as crianças. Ela não teve o apoio esperado de sua mãe nesse momento delicado. “Quando eu engravidei, eu tive depressão. Engravidei três vezes seguidas. Tanto que é uma de 21 anos, uma de 20 e um de 19. Eu não queria saber de cuidar deles. Estava atordoada da cabeça. Minha mãe, em vez de dizer ‘eu vou cuidar deles e esperar ela ficar bem’. Não! Ela deu meus filhos”, diz Maurícia com a voz embargada.

“Quando eu dizia que ia buscar os meus filhos, ela ameaçava chamar a polícia”. Foi assim que Larissa, Estela e Isaque cresceram distantes da mãe. A mulher acredita que seus filhos não tenham sido doados, mas sim trocados por cestas básicas e outros bens que eram oferecidos por pessoas interessadas nas crianças.

Mas a mulher não é uma exceção. De acordo com um estudo divulgado pela Fundação Oswaldo Cruz em 2016, 26,3% das mulheres sofrem de depressão pós parto. O número representa 1 a cada 4 pessoas que deram à luz a uma criança.

Quando tinham por volta de 10 anos, as filhas voltaram a morar com a mãe, pois, segundo as famílias que as adotaram, elas ‘começaram a dar trabalho’. Por isso, Maurícia precisou encontrar formas de cuidar das meninas. “Foi aí que eu comecei a casar. Casei com um, casei com outro pra não deixar elas morarem na rua”. Na época, Larissa e Estela costumavam sair e não queriam voltar para casa, batiam na mãe e começaram a usar drogas ilícitas.

Com aproximadamente 14 anos, as meninas deixaram a casa da mãe e passaram a viver por conta própria. Foi então que Maurícia deixou de morar com homens apenas em busca de prover um lar para suas filhas. Anteriormente desamparada pela mãe e agora deixada pelas filhas, ela desabafa: “Eu sempre fui sozinha”.

A cachorra que adotou, chamada carinhosamente de Mary Jane, e os seis filhotes que nasceram em seguida são sua companhia. Ela sorri ao conversar com os animais e fica brava quando eles aprontam, mas reconhece que, além de companhia, também ajudam na proteção do barraco quando a dona não está.

Apontando para o pet, ela me diz “graças a Deus eu tenho essa aqui, ela não deixa ninguém encostar. Você chegou e ela não rosnou porque sente que você é uma pessoa boa. Agora passa um noiado aqui, ela sai no doido, até com meu próprio irmão porque ela sabe que ele entra no meu barraco pra mexer nas minhas coisas”.

Família ao lado

O irmão de Maurícia é vizinho do barraco e mora com uma mulher prestes a dar a luz a um filho. Maurícia lamenta que ambos estão dependentes de drogas e mexem em suas coisas a fim de conseguir dinheiro para sustentar o vício. Ela conta que já chegaram a roubar seus materiais reciclados e ficaram com todo o lucro resultado de semanas de esforço.

No Distrito Federal, 2.938 pessoas se encontram em situação de rua, de acordo com a pesquisa realizada pela Companhia de Planejamento do Distrito Federal (Codeplan) em fevereiro de 2022. Deste número, 80,7% são homens e 19,3% mulheres.

Solidão

A socióloga Cyntia Carvalho Silva explica que o ser humano aprende com a vivência em sociedade, ou seja, os conhecimentos e relações individuais são construídos a partir do coletivo. Por isso, se dá a importância da socialização. A especialista diferencia os conceitos de estar sozinho e se sentir sozinho, “a solidão não é só física, também é de ideias. Você pode estar sem pessoas por perto, mas estar acompanhado de ideias. Então você não está sozinho”. Dessa forma, entende-se que a solidão de pessoas invisibilizadas afeta toda a coletividade.

A filha

“Cadê sua autoestima, Larissa?”. A filha responde “tá por aí” O gosto pela maquiagem é uma influência de sua filha Larissa, de 21 anos, que atualmente não tem lar fixo. Maurícia explica que a filha peregrina de uma casa para outra de acordo com quem está se relacionando no momento. O último lar da jovem foi a casa do atual namorado, porém precisou improvisar um barraco próximo ao da mãe quando a sogra a expulsou.

Larissa era muito vaidosa quando adolescente. Atualmente, Maurícia já não acha que sua filha se cuida o suficiente. Apontando para Larissa, ela diz “essa aqui não tá tendo mais autoestima não. Olha o cabelo”, e questiona “cadê sua autoestima, Larissa?”. A filha responde “tá por aí”.

Com o cabelo escuro preso e vestígios de uma tinta vermelha na raíz, Larissa vestia uma calça de tactel azul com listras brancas nas laterais e uma camiseta também azul. Nos pés, calça sandálias rosas e tem as unhas pintadas de branco, o que indica que a preocupação com a aparência ainda a acompanha.

A neta

Larissa tem duas filhas. A mais velha, Sophia, foi morar com Maurícia quando tinha apenas 1 ano. Atualmente, com 5 anos, a criança passou a frequentar a escola e é um dos principais motivos para a avó seguir em frente mesmo diante das dificuldades. “Eu já tive vontade, muitas vezes, de, quando tô indo buscar minha neta no colégio, olhar pros carros e me jogar na frente deles, só que eu não posso fazer isso. Eu preciso estar bem pra Sophia”, conta Maurícia e em seguida funga o nariz.

Mesmo em situação de rua, Maurícia cuida para que sua neta esteja sempre arrumada. A menina vai para a escola de tiara ou laço na cabeça e gosta de ganhar vestidos rodados. A beleza da menina chama a atenção.

Maurícia confessa que já chegou a lidar com pessoas interessadas em sua neta. “Já me disseram: ‘nossa, ela é muito linda. Me dá ela’. Neste momento da conversa, passa um homem do outro lado da rua com um carrinho de mercado oferecendo carne. Maurícia solta uma risada com suspiro e nega “quero não, obrigada” num tom mais alto para que ele consiga escutar. Se volta para mim novamente e fala “É isso aí que eu falo: vai lá pro mercado, mente, diz que é trabalhador. Aí ganha a cesta (básica). Quando chega aqui,vende a R$ 10 ou R$ 20”.

Autoestima

Maurícia conta também que sua baixa autoestima foi um dos fatores que a afastaram da escola. “Antes eu não tinha autoestima, então pra mim era indiferente. Eu tinha vergonha de estar no meio dos outros, não queria ir para o colégio porque me sentia feia, não tinha coragem de me olhar no espelho”. Com isso, ela estudou até o 3° ano do ensino fundamental. Atualmente, ela sabe ler, mas não escrever. Para se comunicar por mensagens no celular, ela usa o corretor automático para facilitar a escrita que não domina.

Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), 244 mil crianças de 6 a 14 anos não estavam matriculadas na rede de ensino pública do Brasil no segundo trimestre de 2021, 154 mil a mais que no ano anterior. Aproximadamente 20,2% dos jovens de 14 a 29 anos do país não completaram alguma das etapas da educação básica. Os dados evidenciam que a evasão escolar é um problema antigo e ainda não foi solucionado. Atualmente, quase 82 mil pessoas no DF são analfabetas. Mulheres negras são maioria neste número.

Apesar de enxergar pouca beleza no passado, hoje em dia, Maurícia encontrou algo que a motiva a estar arrumada e se sente bem consigo mesma: a câmera de seu celular. A galeria do aparelho é recheada de fotografias que tira de si mesma em todos os cantos que pode e mostra toda orgulhosa. Uma delas é de quando fez tranças no cabelo para ir à festa junina da escola da neta, outra de quando se sentia triste e resolveu se animar a partir da fotografia. Ela gosta de usar plantas no fundo das imagens e não necessariamente precisa estar toda produzida. Para Maurícia, toda hora é propícia para se fotografar.

Dentro do seu barraco, a parte de cima do pequeno armário de madeira é usada como penteadeira. Ali, Maurícia guarda os produtos que encontra nos containers ou recebe de doação de um ou outro que ultrapassa a barreira que o impedia de ver aquela necessidade. Ela gosta de usá-los para se produzir, trabalhar, se fotografar ou sem motivo específico, apenas para se sentir bem. Ela conta que, às vezes, encontra coisas que nem parecem vir do lixo.

Para a socióloga Cyntia Carvalho Silva, autoestima é um assunto que deve ser discutido, ensinado e incentivado por toda a sociedade. Isso porque o tema tem grande impacto sobre as relações sociais. É preciso “mostrar para as mulheres onde elas estão, quais são suas forças e fraquezas e como vencer os obstáculos em uma sociedade extremamente patriarcal e racista”, declara a especialista.

“Os ricos usam um pouco e já não presta mais. Já achei creme com o pote cheinho, mulher. Se eu te mostrar os sutiãs que eu achei no container…” Se levanta animada e busca uma sacola cheia de peças limpas e rendadas de várias cores como se tivessem acabado de sair da loja. “Onde que eu tenho dinheiro pra comprar isso? É só coisa boa. Por isso que eu amo ir pro meu container”, sorri.

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