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Brasília

Visibilidade trans: histórias de três pessoas em busca de respeito

Thayran, Viviane e Alex, que são trans , contam suas trejatórias para descobrirem quem são e se assumirem como pessoas transexuais.

Agência UniCeub

29/01/2021 18h27

Por Sara Meneses
Agência UniCEUB / Jornal de Brasília

Espelhos são como janelas que refletem muito além da aparência, não têm rotinas, singularidades ou repetições. É possível ler através do reflexo e ser guiado para dentro de si mesmo numa viagem pelo tempo e espaço, como ocorre na vida de quem é trans .  Na Grécia antiga, os specularii eram aqueles que podiam ver, pela catoptromancia, o futuro, presente e passado por meio desses objetos. O primeiro imperador da Dinastia Qin, na China, Qin Shi Huang (260 a.C – 210 a.C), acreditava que seu espelho podia ver as qualidades internas daqueles que olhassem para seu reflexo. O Artefato, presente também na escrita da autora brasileira Clarice Lispector (1920-1977) em sua crônica “Os espelhos”, recebe a descrição de carregar mistérios. O espelho só os revela, segundo a escritora, para aqueles que caminham dentro do seu espaço transparente sem deixar os vestígios da própria imagem.

Para Thayran Pacheco, 30 anos, fisioterapeuta e homem trans, espelhos lembram uma autorreflexão feita na sessão de terapia. “É uma sala com vários espelhos e, no meio dela, uma criança. Eu sou essa criança. E eu fico vendo diferentes versões de mim, versões que eu tentei ser para me adequar e me sentir pertencente. Ao mesmo tempo, era eu tentando me ver de outra maneira”, diz o morador da Asa Norte

O espelho tem outro poder, de refletir quem você é ou quem você quer ser. Mas, já dizia Clarice Lispector, quem você seria se você fosse você? “Se eu fosse eu” é para uma pessoa trans “o maior perigo de viver”, mas também “a plena experimentação do mundo”. Na busca para responder Clarice, fui atrás de relatos de pessoas transexuais. Thayran diz que sempre foi ele mesmo, mas nem sempre soube o significado da pessoa que ele era. “Quando começaram as separações (na infância) sobre ‘isso é de menino’ e ‘isso é de menina’, eu comecei a sentir uma raiva, mas, ao mesmo tempo, era uma raiva que eu não entendia”. Na adolescência, o rapaz passou  a ter desconfortos. “ Eu tentava fazer parte, mas não me sentia bonito. Com o amadurecimento, eu comecei a ler mais, ter mais curiosidade e, em 2014, foi quando eu não me percebi nem como mulher ou homem, mas como pessoa. Então, em 2018, eu comecei o trabalho na terapia para tratar de outro assunto, a minha adoção. Foi quando eu me abri para o processo da transição, com hormônios e, futuramente, cirurgias”.

“O bom é que a verdade chega a nós como um sentido secreto das coisas. Nós terminamos adivinhando, confusos,a perfeição.” – Precisão, Clarice Lispector

Nas lembranças de Thayran, há um olhar nostálgico, carinhoso e com um brilho ao falar sobre a esposa e os amigos. “Eu tenho e tive muita sorte nas minhas amizades, eles sempre me apoiaram. E, principalmente, a minha esposa, que me conhece desde a faculdade, e acompanhou todo o processo do meu lado”. A parte mais delicada foi lidar com a família na cidade de Malacacheta do interior de Minas Gerais e religiosa. “Eu, por exemplo, nunca virei para minha mãe e disse ‘sou trans’, ela foi vendo as mudanças. Até hoje, me chama pelo masculino e eu não a culpo, porque sei que ela faz o que consegue”.

A situação de Thayran não é exceção, a luta pelo reconhecimento começa na família, emprego e vai até a constituição federal. O advogado Victor Alysson explica que o Direito a Busca pela Felicidade do STF, algo novo nos tribunais, garante empoderamentos aos LGBTs. “A busca pela felicidade é lutar para que não importe que em uma contratação ela  seja . É lutar pelo uso do nome social. É buscar qualidade de vida e combater o que anula a felicidade desse grupo”, explica.

“Eu sabia que era diferente” 

Reflexos: Viviane diz que é uma “explosão”. Foto: Acervo pessoal

Espelho, espelho meu, existe alguém como eu? Acredita-se que a “verdadeira” Branca de Neve era uma baronesa da Baviera, na Alemanha e que os espelhos produzidos no vilarejo de Lohr tinham a qualidade de sempre”dizerem a verdade”. Se a influenciadora digital, Viviane Lima, 26 anos, de Guarulhos (SP), conseguisse olhar para o objeto, ele a confirmaria o que sempre soube desde sua infância – que era uma mulher. “Eu sabia que era diferente, mas tudo que aconteceu durante o processo foi e é muito complicado de superar. Hoje, eu sou uma explosão, sou apenas eu e sou feliz, mesmo tendo que ‘matar um leão’ por dia”.

Em 2019, o Brasil registrou 124 casos de mortes e violência contra travestis e transexuais, o que coloca o país no topo do ranking dos que mais registram esse crime no mundo. “Eu já sofri muito preconceito, descriminação e violência durante todo o processo, passei por situações de estar andando na rua e levar uma voadora e, até mesmo, ser apedrejada”. Para ela, todas as situações de violência e agressão geraram um medo muito grande de andar sozinha na rua

Viviane conta que o dia do apedrejamento foi um momento muito difícil de superar. “Ver aquele monte de criança jogando pedras em você, sendo incentivada pelos pais, é o pior sentimento do mundo e quando uma delas jogou uma pedra no meu rosto eu revidei com um tapa. Na hora, o tanto de gente que veio querendo me agredir foi surreal, se não fossem por amigos que estavam perto, eu não sei o que teria acontecido”.

Para a psicóloga especializada em atendimento ao público LGBT, Thaís Ventura, tratar com crianças sobre o assunto deveria ser feito de uma forma natural. “As crianças são muito capazes de entender o que está acontecendo. Elas conseguem organizar seus sentimentos e pensamentos. ‘’É preciso trazer para nossa realidade que precisamos sentar e conversar com elas”, explica.

Rotina para trans no Brasil

De acordo com a Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra), no primeiro semestre de 2020, a quantidade de pessoas trans assassinadas no Brasil, foi 39% maior que em 2019. Apesar do aumento, os dados não refletem todas as violências transfóbicas e, na vida de Viviane, as vulnerabilidades e o medo estiveram presentes desde muito cedo. “Aos meus sete anos, fui violentada sexualmente por um vizinho. Eu ainda era uma criança e talvez ele não lembre disso hoje, mas eu lembro. Já nos meus 15 anos, eu sofri outra agressão por dois garotos do ginásio e, até hoje, eu tenho muito dificuldade para me abrir e confiar em alguém”.

Se olhar no espelho, para uma pessoa trans, pode ser um processo difícil e doloroso, imagine se olhar e não se reconhecer no corpo que tem. “Eu já cheguei a me machucar muito, principalmente de ficar dias sem conseguir andar direito. Hoje, eu me olho e me aceito, eu amo quem sou e, por exemplo, não pretendo fazer a cirurgia de redesignação sexual”

“Bem sei, experimentaríamos enfim, em pleno, a dor do mundo. E a nossa dor aquela que aprendemos a não sentir.” – Clarice Lispector

As fragilidades da comunidade trans vão muito além da agressões físicas e psicológicas. Então, conseguir estabilidade financeira, um emprego digno ou um teto para morar são “portas” muito difíceis de serem abertas para a comunidade trans. “O que eu mais me orgulho na minha vida é a minha carteira de trabalho, eu lutei muito por ela e levei muito não na cara. Estender meu currículo para alguém é a melhor sensação do mundo”.

“O 1º contato com a transfobia é dentro de casa” 

O medo não é maior que a felicidade para Alex. Foto: Acervo pessoal

Há diversos mitos sobre como os espelhos conseguem, não apenas refletir sua aparência, mas também prender suas almas. A crença popular pode representar como pessoas transgêneros se sentem presas ao seus próprios corpos. Para Alex Rezende, 25 anos, morador de Taguatinga (DF),  estudante de biblioteconomia e homem trans, entender o que estava acontecendo foi um processo que durou mais de 17 anos. “Eu não sabia nem que existia. Eu via muita coisa, mas não sabia a dominação. Era uma sensação de nunca me sentir pertencente a nenhum lugar”.

Alex começou sua transição há dois anos atrás, com 23 anos. Ele conta que a força para começar a trilhar uma nova história foi por conta de um antigo relacionamento. “A pessoa que estava comigo me dava muito suporte e batia de frente com todos que tentava fazer algo. Eu sou grato por essa ‘voadora’ de incentivo”, explica.

No outro lado da moeda, a reação da família não foi tão agradável. “Minha mãe me disse coisas bem fortes, como ‘eu prefiro ver você morto do que com barba’. O meu pai finge até hoje que isso não acontece”. Para o irmão mais novo de Alex, a mudança foi estranha, mas bem recebida. “Eu contei primeiro para ele e perguntei para ele o que ele achava de ter um irmão e não uma irmã, mas ele foi super compreensível”, relembra.

Com a pandemia da covid-19,  estar dentro de casa pode ser um fator prejudicial para sua saúde mental de qualquer pessoa. Para uma pessoa trans, o medo pode ser além da doença. Segundo uma pesquisa realizada pela Fundação Thomson Reuters, 30% – dos 3,5 mil homens gays, bissexuais e transexuais entrevistados – têm medo ou não se sentem seguros dentro de casa, durante o isolamento social.

Para a psicóloga Thaís Ventura, o momento da pandemia é um momento delicado e difícil. “A solidão da pessoa trans sempre foi uma questão de sofrimento. E, durante a pandemia, isso se agravou, porque ou você vive só ou está em constante contato com uma pessoa intolerante. O que gera uma dor”, explica.

No caso de Alex, os problemas começaram com o aumento de ansiedade e insegurança. “Eu tomo hormônios e com tudo que estava acontecendo, eu tive que parar. Minha menstruação voltou. É algo que me traz muita disforia”, detalha. O medo vai além da pandemia, é constante. “Eu já ouvi muita coisa e, na época das eleições de 2018, eu sofri uma agressão. Eu estava usando o banheiro de um shopping e eu apanhei. Simplesmente por usar o banheiro”, relembra.

O apoio em casos de violência é baixo e muitos transgêneros não se sentem à vontade para procurar ajuda. “Quando eu fui atrás do segurança do shopping, ele apenas me disse ‘você nem deveria estar lá’. Foi só uma vez, mas, desde então, eu evito banheiros públicos”.

O advogado Victor Alysson explica que a falta de denúncia é uma situação comum no meio. “A Cifra Rosa são os crimes de ódio cometido contra os LGBTs que não chegam nas delegacias e na polícia, é um número alto”. O ato de denunciar é  também uma forma de luta. “A gente vê muito a revitimização, que é quando a pessoa vai denunciar e sofrer outra agressão. Por isso, muitas  pessoas desistem, eu sempre tento explicar que a denúncia é também resistência”.

Alex diz que se orgulha de quem é agora, o medo não é maior que sua felicidade. “A minha ansiedade diminuiu, eu tive uma melhora com a depressão e a fobia social”. E quando perguntando o que diria para seu Eu do passado há um olhar nostálgico e um sorriso. “Não desiste… Não desiste… No final, vai dar certo”, conta.

“Mas também seríamos por vezes tomados de um êxtase de alegria pura e legítima que mal posso adivinhar. Não, acho que já estou de algum modo adivinhando, porque me senti sorrindo e também senti uma espécie de pudor que se tem diante do que é grande demais” – Clarice Lispector.

O poder de se olhar no espelho e finalmente reconhecer quem você é por dentro e por fora, é algo descrito com muito carinho por Thayran, Viviane e Alex. Em seus rostos há sempre um semblante de vitória e luta. O caminho é duro, marcado por diversos obstáculos e, muitas vezes, solitário. No entanto, em todos há algo em comum – a alegria de poder ser finalmente quem realmente é.

“Eu não mudaria nada no meu passado. Ele me trouxe até aqui” – Thayran Pacheco

“Hoje as pessoas riem comigo e não de mim” – Viviane Lima

“O meu maior orgulho é ser chamado pelo meu nome” – Alex Rezende

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