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Brasília

Margaridas: a cura de Elismar Ferreira da Silva

Natural da cidade de Palestina (PA), a 650 km de Belém, chegou a Brasília em 2002, grávida de cinco meses do segundo filho

Redação Jornal de Brasília

08/03/2023 5h00

Atualizada 15/05/2023 16h43

Foto: João Canizares/Agência de Notícias CEUB

Brenna Farias
Jornal de Brasília/Agência de Notícias CEUB

No dia 28 de julho de 2021, quando recebeu o diagnóstico do câncer de mama, Elismar Ferreira da Silva, 41 anos, sentiu o “mundo desabar”. As lembranças agora são acompanhadas de um suspiro aliviado, mas causaram muitas incertezas ao longo dos nove meses de tratamento. “Eu só pensava que ia morrer sem ser tratada”, diz Elismar.

Natural da cidade de Palestina (PA), a 650 km de Belém, chegou a Brasília em 2002, grávida de cinco meses do segundo filho, depois do divórcio do primeiro casamento. Ela recorda que morava na casa dos sogros e ficou sem teto após a separação. “Eu falo que Brasília me acolheu. Eu vim com a cara e a coragem”, relembra Mazinha, como é carinhosamente conhecida.

Na capital, começou o trabalho de doméstica e morou no Itapoã, na região do Paranoá, até chegar ao Margarida Alves, onde mora há quatro anos com o esposo e um dos três filhos. Foi lá que ela nos recebeu, com sorriso no rosto, na banca na número 25 da feira. A venda das roupas usadas surgiu da necessidade de arrecadar dinheiro para as primeiras quimioterapias particulares. Mazinha ouviu da médica que precisava começar o tratamento rápido antes que o caroço do seio estourasse. Na lista de espera da rede pública há quatro meses, e sem previsão de ser chamada, começou uma verdadeira maratona contra o tempo.

O  câncer de mama é o que mais causa morte em mulheres e, depois do de pele, é o segundo mais comum no Brasil. Foram estimados 66.280 novos casos em 2022. Só em 2020, a doença matou 17.825 mulheres no país. Os dados são do Instituto Nacional de Câncer (INCA)

Mazinha conta que, seguindo o conselho de um amigo, fez vídeos contando sua história de vida e pedindo contribuição em dinheiro para o tratamento, que não conseguia pagar com o salário de doméstica. As imagens circularam nas redes sociais. “Eu só sei que estava com tanta vontade de viver que perdi a vergonha”, lembra. 

Com a ajuda da comunidade, a ação foi um sucesso. Além das roupas para o bazar, recebeu outros objetos para fazer bingos e rifas: perfumes, porco, bode e marmitas de feijoada. “Abaixo de Deus, foram eles que me acolheram. Nem eu sabia que tinha tanta pessoa que gostava de mim assim. Só tenho a agradecer”, relata Mazinha. Quase R$ 6 mil foram arrecadados em 20 dias, e a primeira sessão de quimioterapia foi feita. Só depois da segunda sessão particular, ela foi chamada para terminar o tratamento na rede pública.

Mazinha viu na situação a oportunidade de começar o seu tão sonhado negócio próprio. Já que não poderia trabalhar como empregada doméstica, ela procurou Damiana, líder da feira e agora vizinha de banca, para pedir uma barraca própria e continuar o bazar. Com o prazo de um mês para montar a estrutura, contou com a doação de madeiras da própria Damiana, e mão de obra de um amigo para “levantar o barraco”. 

O espaço é organizado. Mesas de plástico e tábuas são usadas como expositores. Bem dobradas, as peças são separadas por categoria. Varais de corda improvisam uma arara e acomodam peças penduradas em cabides. Em um dos cantos, uma cortina é usada como provador para as clientes. O bazar divide espaço com fogão e algumas panelas. Mazinha explica que muitas vezes acaba comendo na banca para não precisar voltar para casa. 

Apesar do esforço, o negócio ainda não paga as contas. A casa é mantida pelo marido, autônomo, que trabalha como soldador. Depois de fazer uma conta rápida, ela me disse que tira cerca de R$300 por mês, e completa: “R$ 300 eu deixei só na farmácia esse mês”. 

Mas qual o maior sonho? “Uma casa de verdade. Porque meu barraco, no momento, é um barraco de madeirite. E meu negócio, que eu vou expandir ele, com fé em deus”. Mazinha espera ansiosa pela regulamentação do local, sem interesse em sair do assentamento. “Eu quero terminar de fazer minha vida aqui. Aqui no assentamento”, reforça.

O próximo passo é incrementar a banca realizando um outro sonho antigo, trabalhar com comida. Mazinha me diz que quer acrescentar um café da manhã. Os sacos de cimento no canto revelam que as melhorias na estrutura já começaram. “Quando você vir outras vezes, ela (a barraca) vai estar mais aconchegante”, promete. 

O tempero de Ivone Matos Correia

Na casa da família Gomes, o almoço de domingo recebe convidados e exige trabalho mútuo. Às seis horas da manhã, todos já estão acordados. Depois de arrumar o café da manhã das crianças, Ivone Matos Correia, 43 anos, volta a atenção para a cozinha. Ela é a responsável pelo peixe que atraem moradores da região para o comércio da família, e é o carro chefe da produção. Com a ajuda dos dois filhos, o marido organiza a frente da casa para receber os clientes a partir das onze e meia.

Foto: João Canizares/Agência de Notícias CEUB

Na hora do almoço, a varanda foi ocupada pelo balcão de self service, a caixa de isopor com peixes frescos e as mesas de plástico. Seu Gomes, como é conhecido pela comunidade, fica responsável pelo atendimento. Além do almoço, a casa tem uma mini conveniência. Em cima do freezer, um caderno com anotações das vendas fiado.

Na hora do movimento, o filho mais velho precisa ajudar no caixa e pegar alguma coisa na venda. “Quando eu mais preciso, você inventa de almoçar”, reclama o pai. Sentada em uma das mesas, a cliente gritou: “não precisa apressar à Ivone, deixa ela fazer o peixe como ela sempre faz”, elogia.

Ivone é cearense, nascida na cidade de São Gonçalo do Amarante. Ela e o marido vieram para Brasília em busca de uma oportunidade de emprego melhor. Seu Gomes trabalhava com o seguro de trânsito Dpvat quando foi convidado pelo supervisor para deixar a cidade natal. “Realmente, quando nós chegamos aqui, era melhor”, relembra Ivone.

Com o tempo, a situação mudou e a família precisou buscar outras alternativas. A oportunidade de ter um espaço no Margarida Alves, surgiu em 2017 quando moravam no Jardim ABC, na Cidade Ocidental (GO). O marido já trabalhava em uma construção civil a 42 km de casa, no Itapoã. Foi um colega de trabalho que falou sobre o assentamento e deu o suporte para a mudança “o aluguel era muito caro, de tábua e tábua, fiz meu barraco”, relembra Ivone.

Hoje, o sustento da casa vem do comércio e dos bicos que o marido faz como mestre de obras. As vendas giram em torno da própria comunidade e poucos clientes que vêm de fora, a maioria em busca de peixe fresco, tratado e feito na hora. O prato sai entre R $35 e R $40. Ivone explica que o lucro é muito instável. “É uma população de baixa renda. Às vezes a pessoa tem dinheiro na data que recebe auxílio. Tem final de semana que eu não vendo um peixe. É o comércio”.

Antes da pandemia, as vendas eram melhores, os almoços aconteciam aos sábados e domingos, além do churrasquinho com jantinha durante a semana. “Pandemia chegou, acabou espetinho, acabou o bar, almoço era só marmita. Foi um balde de água gelada em todo mundo”, lamenta Ivone.

Muita coisa é adiantada no dia anterior para facilitar a dinâmica do trabalho. Na cozinha, Ivone tem ajuda. Discreta, a funcionária chega cedo, corta verduras, trata o peixe e lava as louças. Ela pede gentilmente: “você só filma ela, tá?”. As mulheres dividem espaço com um observador atento, o Kiwi. O papagaio apareceu na casa da família quando era só um filhote, e nunca mais foi embora. Vive solto e circula livremente pelo ambiente, inclusive na cabeça dos clientes.

Durante a semana, a rotina da família é diferente. O casal se empenha em procurar mercadorias em promoção para repor o estoque. As crianças estudam em horários distintos. O filho mais novo, Mateus, de 8 anos, estuda na escolinha que atende as crianças da região. Já o mais velho, Joaquim, 10 anos, vai de ônibus até Sobradinho.

A alguns passos da portaria, a parada pintada de verde é resultado de uma recente ação feita pelos moradores para melhorar a qualidade de vida de quem depende do meio de locomoção. Até recentemente, o ônibus escolar era o único que passava no local. Os moradores ficavam reféns dos loteiros para sair dali, com preços que dependiam do dia e horário. Agora, uma linha leva até Sobradinho e Paranoá, e facilita a vida da comunidade.

O maior medo de Ivone é que a regulamentação não dê certo e as casas sejam derrubadas. “Eu acho muito sofrido, muito dolorido, você batalhar e o governo vir e passar uma máquina por cima, vir com o trator e derrubar”, lamenta. Ela esclarece que aprendeu a gostar do local, mas mora no assentamento por falta de opção. Sonha com o dia que voltará para a cidade de origem, para perto da família. “No Ceará eu tinha minha casa, morava na praia. Isso aqui é fora da realidade… não quero passar minha vida toda no barraco”, diz Ivone.

“As pessoas que não conhecem o que é morar em um assentamento, em invasão, pode ter uma visão diferente da realidade. Você ter conforto na cidade e passar a morar aqui dentro, não é fácil… Meu sonho, eu tenho fé em Deus que vou sair daqui e voltar para minha terra. Eu não tenho outro pensamento”.

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