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Brasília

Lutas e margaridas no assentamento

As mulheres do assentamento sabem pouco sobre Margarida Alves, mas compartilham histórias de luta e resiliência

Redação Jornal de Brasília

08/03/2023 5h00

Atualizada 15/05/2023 16h46

Foto: João Canizares/Agência de Notícias CEUB

Brenna Faria
Jornal de Brasília/Agência de Notícias CEUB

Após dois quilômetros de estrada de chão, a placa “Bem-vindo ao Margarida Alves” indica que chegamos à comunidade. O local carrega o nome da defensora dos direitos humanos e sindicalista brasileira. Margarida, nascida na cidade de Alagoa Grande (PB), notabilizou-se pelo direito dos trabalhadores no campo, e morreu assassinada em 1983, com 50 anos de idade.

Trinta e nove anos após sua morte, Margarida continua a inspirar movimentos sociais. Desde o ano 2000, mulheres de todo o país marcham até a capital federal, a cada quatro anos, para homenageá-la e lutar contra pobreza e violência de gênero. A última edição, em 2019, reuniu mais de 100 mil participantes. As mulheres do assentamento sabem pouco sobre Margarida Alves, mas compartilham histórias de luta e resiliência.

Nas manhãs de domingo, o som alto e a movimentação na avenida principal revelam que a feira está funcionando. A líder dos comerciantes, Damiana Conceição Pereira, 31 anos, explica que assim como nas moradias, o espaço para a banca da feira é cedido para moradores que queiram empreender. O empreendedor constrói a barraca por conta própria e paga uma taxa de R$ 80 para instalação de água e luz no estande.

Além disso, os feirantes organizam-se para criar estratégias e dividir os custos de melhorias para o local. “Agora mesmo, a gente tá trabalhando para organizar a iluminação da frente. A gente teve a ideia de deixar a avenida iluminada. Trocar as lâmpadas para clarear de ponta a ponta”, esclarece Damiana. Das 28 bancas, 21 são de mulheres. Elas expõem seus produtos nos estandes de madeira, na esperança de fazerem boas vendas no fim de semana.

A liderança de Damiana Conceição Pereira

Entre vendedores e compradores, Damiana Conceição Pereira, 31 anos, caminha pela feira com cadernos na mão, colhendo assinaturas e fazendo o que chama de “reuniões individuais”. Desde que chegou no assentamento, há seis anos, ela se divide entre o tempo com a família, marido e filhos, o curso de gestão administrativa às quartas-feiras, a coordenação da feira e sua própria banca, a ‘Tem de tudo’. Tem o salão, a casa de ração, a parte de mercadoria novas com peças íntimas e calçados e o bazar. “E fora isso, eu ainda faço diária (de faxina) quando aparece, caso você saiba de alguma coisa”, sorri Damiana.

A curiosidade pelo ramo da beleza surgiu ainda na sua cidade de origem, Serra do Ramalho, município da Bahia, no Vale do São Francisco. Damiana conta que conheceu uma vizinha recém chegada de São Paulo que era manicure. A mãe, religiosa, não deixava que as três filhas mulheres, dos dez irmãos, pintassem as unhas e muito menos virassem manicure. O estímulo surgiu de uma amiga que conheceu na cidade de Goiânia (GO), para onde se mudou com o ex-esposo em 2011. Gerusa tinha um salão e doou todos os materiais para Damiana fazer o curso.

Foi em um dos atendimentos em domicílio, já em Brasília, que a manicure tomou conhecimento sobre o assentamento Margarida Alves. Enquanto compartilhava das dificuldades que ela e a família enfrentavam, ouviu de uma conhecida “você tem coragem de morar em uma invasão?”. “Eu sou do interior, eu não tinha muito conhecimento do que era uma invasão. Mas a gente pensa logo assim: vou sair do aluguel”, relembra Damiana.

Antes de chegar ao assentamento, ela e a família moravam no Itapoã, cidade que fica a vinte quilômetros do local. Ela relembra da rápida construção do barraco para não perder o espaço. “Quando cheguei aqui ainda fiquei dois dias sem luz, no escuro com meus filhos, porque não tinha como pagar os R$ 20 para ligar a energia”, diz Damiana.

Foi ela a responsável pelo meu contato com as mulheres empreendedoras. No fim do nosso primeiro encontro, depois de esclarecer detalhes sobre a comunidade, era a vez de Damiana fazer perguntas. “Onde você vai publicar essa matéria?” “Que tipo de perguntas você vai fazer para as mulheres?”. Desconfiada, abriu o caderno e anotou minhas respostas. A reunião que ela marcou de última hora, esclareceu as dúvidas de todas e fez com que minha presença não trouxesse estranheza às moradoras.

Na manhã do dia 18 de setembro, ela recebeu, na banca Tem de tudo, os dois homens que ficaram responsáveis pela colocação da água para os feirantes. Sentados nas poltronas do salão, eles acertaram os últimos tópicos e assinaram a ata da reunião, escrita a mão pela própria Damiana em um dos seus cadernos. A mulher nascida e criada em uma cidade nas margens do rio São Francisco, o mais importante do rio estado da Bahia, agora luta contra a escassez de água para a comunidade.

A água do local é tirada de um poço artesiano e levada por tubulação até uma caixa. Cada uma das sete ruas tem uma bomba e um dia da semana próprio para recebê-la. Os moradores precisam administrar o consumo para não sofrerem com a escassez. Eles escolhem quem será o responsável por ligar a água da rua no dia indicado. Os responsáveis pela água da feira são Francisco Martins, o Seu Mulinha, e Francisco Lopes, o General.

De todas as suas atividades, a liderança da feira é a que mais toma tempo. “Eu sou empreendedora e busco melhorar o empreendedorismo do outro. A gente nunca pode querer só para a gente, você tem que correr atrás do seu e incentivar mais alguém”, afirma Damiana. O cuidado vai além dos espaços da feira. Com orgulho, a líder me mostra fotos e vídeos de entregas de cestas básicas e roupas, que ela mesma conseguiu em parceria com moradores de um prédio da Asa Norte (DF).

“Os dias são difíceis até para cuidar de dentro de casa, imagina você ter um comércio. Pelo fato de ser liderança, sempre tenho que pensar na melhoria das famílias. Eu sempre estou atenta a atender alguma família que está precisando”, diz Damiana. Na pandemia, a situação se agravou. Ela lembra que precisou recorrer a amiga Ivone, dona de uma conveniência, para comprar feijão fiado. Passou por situações de deixar de comprar para a casa e ajudar famílias que precisavam mais.

Apesar das dificuldades, não pensa em sair do local e não tem muitas ambições. Sonha em ter liberdade para construir um muro no lote e poder passar o dia todo de babydoll em casa. “Quero que seja regularizado, que a feira vire uma grande avenida de comércios. Quero ver a evolução para as coisas melhorarem para todo mundo (…) eu já não vejo isso aqui como se um dia fosse vir um trator. Eu damiana, com minha fé, não com os olhos humanos, eu creio e acredito que isso aqui o passo é evoluir. Acabar, não mais”, conclui.

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