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Brasília

Fronteiras: trabalhadoras saem de cidades do Entorno pela madrugada para chegar a Brasília

O dia a dia delas acontece a 50km de onde moram, nas cidades de Brasília, onde passam a maior parte do tempo. Para casa, elas só voltam para dormir

Redação Jornal de Brasília

13/10/2022 18h07

Foto: Ana Paula Marques/Agência de Notícias CEUB

Ana Paula Marques
(Jornal de Brasília/Agência de Notícias CEUB)

Ainda é madrugada e elas já estão no balançar incômodo do ônibus lotado e quase completamente feminino. Elas vão em pé e se seguram como podem. O espaço é tão pouco que se trocarem a posição do pé, não vão ter mais onde colocá-lo. São as chefes de família que precisam sair antes dos primeiros raios de sol para conseguir colocar comida na mesa.

Elas saem juntas, às 4h da manhã, e vivem entre territórios. Mesmo agora em 2022, ano de eleição, não sabem direito com quem reclamar quando a vida se sacoleja como no ônibus lotado, sem luz do sol.

São moradoras do Entorno da capital do Brasil, do município de Águas Lindas de Goiás (GO). O dia a dia delas acontece a 50km de onde moram, nas cidades de Brasília, onde passam a maior parte do tempo. Para casa, elas só voltam para dormir.

Elas saem e chegam em casa à noite. Trabalham longe e sustentam uma rotina quase militar para conseguir bater o ponto do serviço no horário certo. Ficam tanto tempo dentro do ônibus que deixam de tomar café da manhã para não passar mal. Vivem na fronteira entre dois estados. “Votar para quem? Ou por quê”, se questionam.

O olhar cansado está presente até mesmo nas primeiras horas do dia. A cabeça baixa e a postura encurvada traduzem a fadiga de terem dormido pouco. As que vão sentadas aproveitam para cochilar. Mas não sonham. Algumas que estão em pé se arriscam fechando os olhos, mas não dura muito tempo. O ônibus às acorda quando faz uma parada para outra passageira entrar.

Elas carregam bolsas com remédios – porque com esse trânsito a chances de dores de cabeças são altas -, guarda-chuva, algumas balinhas, as documentações, a carteira e deixam sempre um espaço reservado para colocar um casaco. Na madrugada silenciosa, o frio se faz presente até no aglomerado do ônibus.

Fazem parte da estatística registrada no ano de 2017 e 2018, pela Companhia de Planejamento do Distrito Federal (Codeplan). Estão entre o número de 58,09% da população total do município de Águas Lindas que trabalha em Brasília. São os 50,64% dos trabalhadores da cidade que usam ônibus como meio de transporte.

Em pé

A empregada doméstica Ivanilde Maria Dos Anjos, de 55 anos, é uma dessas mulheres que encabeçam a mesa da cozinha e as contas da casa. Ela trabalha na Asa Norte e acorda todos os dias há mais de 20 anos, às 4h da manhã, para tentar chegar às 7h10 no serviço.

Durante as duas horas de viagem até o trabalho, Ivanilde fica em pé. Vai o caminho todo “rezando” para que não aconteçam acidentes. Nesses dias, as horas dentro da condução duplicam e suas pernas chegam a “bambear” pelo esforço de se manter em pé. Diz que poderia contar nos dedos às vezes em que foi sentada.

“Eu já chego no trabalho cansada, com as pernas doendo, mas não posso parar, né? Já vou limpar tudo. Eu me sento mesmo só na hora do almoço”.

Nos últimos anos, ela relata ter mais mulheres no transporte público do que homens. Fala que hoje em dia quem está na frente são as mulheres. Ivanilde é divorciada e trabalha para pagar a casa que uma vez já foi dela.

Ela reclama que no município de Águas Lindas existem poucas oportunidades de trabalho e que sua escolha, o direito de voto, “não ajuda a resolver nada”.

“Os políticos entram e saem de lá e nada muda. A escolha que eu faço é não passar fome. Por isso eu vou trabalhar tão longe e mal conheço minha própria casa… Trabalho para sobreviver”.

Ivanilde não se sente segura por sair quando as luzes dos postes estão acesas, e das casas, apagadas. No percurso da vida, ela e um grupo de mulheres vão todos os dias juntas para a parada de ônibus. Andam em grupo. Cabeças femininas que correm dos “lobos” e seguem, mesmo com a sensação de medo.

Segundo a Codeplan, 52,69% das ocorrências de violência de assaltos e roubos registrados no município de Águas Lindas, acontecem quando as pessoas estão andando na rua. Isso quando feito o boletim de ocorrência, já que segundo os mesmos dados, 50,90% da população da cidade que sofre esse tipo de crime não denuncia.

Perpetuadas

Com 23 anos, Lidiane Corrêa Lima já faz parte de uma linhagem que parece não ter fim. De mulheres que acordam à noite e chegam ao trabalho exaustas. O seu Cotidiano não parece com o cantado por Chico Buarque (em que “ela faz tudo sempre igual”). Ela não acorda às 6h, como inspira o poeta, mas às 3h30.

Ela trabalha como coordenadora pedagógica em uma escola de ensino infantil, no Lago Sul, região administrativa do Distrito Federal. São 63,4 km de Águas Lindas. Escala todos os dias os degraus de quatro ônibus, dois para ir e dois para voltar.

Esse caminho, ela faz de segunda a sexta. O total de 2.520 km em 20 dias. É como se, no sacolejar incessante do ônibus, ela fosse até Jaguarão, fronteira do Brasil com o Uruguai, todo o mês. Mas a cada dia, a fronteira é com Brasília.

Faz esse esforço para manter a família de três integrantes. Ela, a mãe e a sobrinha – que apesar do parentesco, é mais como uma filha -, são responsabilidade dela, que ainda sonha e planeja o futuro. Apesar de todo esse tempo dentro do transporte público, consegue estudar no formato a distância “por ser mais flexível”. No computador, o caminho parece mais distante.

Com a fala cansada, diz que a esperança se mantém no voto, porém a luz que enxerga está no futuro distante. Não é a do computador nem a do farolete do ônibus. “Talvez com políticas públicas de qualidade, eu possa trabalhar na minha cidade e não só dormir em Águas Lindas. Mas acho que isso só vai acontecer daqui uns 10 anos”.

Ela testemunha que sua mãe já teve a mesma rotina, da qual ela “luta” para sair, mas seus olhos cansados se voltam para a janela do ônibus que continua o seu balançar desgastante.

Dor nas costas

A auxiliar de cozinha Maria Francisca da Silva, de 57 anos, conta os dias para conseguir sua aposentadoria. “Faltam 4 anos e alguns meses. Antes da reforma – da previdência- de 2019 eram só 3, mas pelo menos tá perto”.

Ela que trabalha desde os 15 anos, muitas vezes sem carteira assinada, deseja querer parar de acordar ainda quando é noite. Nunca conseguiu emprego no município em que mora.

Quando veio do interior da Bahia, da cidade de Irecê, para a capital do Brasil, pensava na fome que era maior que suas dores nas costas. Hoje, pensa em poder passar um dia ao menos sem tomar remédio para a dor que lateja na coluna, por ter ficado horas em pé na condução.

Mesmo com o peso da rotina, consegue enxergar o dia em que vai acordar depois do cantar do galo. O dia em que vai poder sentar sem ouvir o barulho alto dos motores de ônibus, sem o chacoalhar que dá dores de cabeça. Sem se preocupar com trânsito.

Neste ano em que o voto feminino completa quase um século, ela diz fazer questão de ir às urnas para que as próximas mulheres não tenham que acordar antes do sol.

“Vou lá votar, é claro! Quero mudar as coisas e o único jeito que o povo tem de fazer isso é votando”. Como canta Chico, o que sacode às 6 horas da manhã não pode ser um sorriso pontual”. Todo dia, segundo elas, pode fazer a diferença.

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