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Brasília

Feminicídio no DF e o impacto do crime na vida dos familiares das vítimas

Pesquisa realizada por integrantes do MPDFT e da Secretaria SES analisou o impacto do crime de feminicídio na vida das famílias das vítimas e suas percepções quanto ao sistema de Justiça

Mayra Dias

05/09/2022 18h28

Foto: Divulgação

Uma pesquisa realizada por integrantes do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios (MPDFT) e da Secretaria de Saúde (SES) analisou o impacto do crime de feminicídio na vida das famílias das vítimas e suas percepções quanto ao sistema de Justiça. Nesse processo, foram entrevistadas 21 familiares de 19 mulheres assassinadas no contexto de violência doméstica entre 2016 e 2017. 

O Distrito Federal registrou aumento de 45,2% no número de casos de feminicídio em 2021 no comparativo com o ano anterior. Dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública, divulgados pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), no dia 28/6, apontam 25 notificações do crime no ano passado e 17, em 2020. No proporcional com as outras Unidades da Federação, a capital federal ocupa a liderança dos homicídios femininos classificados como feminicídios, com 58,1% dos casos. 

O resultado da pesquisa do MPDFT e da pasta de saúde foi que a maioria dos familiares não foi contatada pelo sistema de Justiça, apesar de conhecerem o histórico de violência entre o autor e a vítima. Além disso,  houve agravos na saúde mental, especialmente dos filhos das vítimas, que, não apenas perderam a mãe, mas também foram separados dos irmãos e viram o pai ser preso. 

Segundo a pesquisa, as famílias também relataram que o medo do agressor persistiu durante o processo e que não houve acolhimento protetivo pelo sistema de Justiça. Vale destacar que houve ainda queixas de revitimização e de violação à memória da vítima no julgamento e na cobertura midiática de tais crimes. 

De acordo com o documento do MPDFT, os relatos de mães, pais, irmãs e filhos evidenciaram a relevância de políticas públicas que ofereçam assistência psicológica, social e jurídica aos familiares das vítimas. Os entrevistados para a análise deixaram clara a importância do acesso a formas de elaboração do luto para a superação das consequências da violência.

Além desses dados, a pesquisa trouxe também que a maioria das famílias entrevistadas tinha conhecimento de episódios de violência entre agressores e vítimas. Apenas em seis casos os familiares disseram não ter conhecimento de agressão prévia. Destas, três sequer sabiam do relacionamento. 

Os episódios de violência e as ameaças ficaram mais graves ou mais frequentes nos seis meses anteriores ao crime em 32,4% dos casos. Os familiares de três das vítimas afirmaram que as mulheres contaram sobre os episódios de violência somente poucos dias antes do crime.

Como ficam as crianças

Entre os casos estudados para o desenvolvimento do levantamento, 6 mulheres não tinham filhos, 18 tinham filhos de outros relacionamentos e 8 tinham filhos com o agressor. Duas mulheres estavam grávidas no momento do crime. As 26 mulheres que possuíam filhos deixaram 58 órfãos. Desses, 56% eram menores de 18 anos.

Em todos os casos, havia histórico de violências físicas ou psicológicas entre as partes. Em 44,1% dos casos, tanto familiares quanto amigos já haviam presenciado agressões em momentos anteriores. Os filhos das vítimas também presenciaram situações de violência prévia em 32,4% dos casos, e nove crianças ou adolescentes foram diretamente expostos à cena do feminicídio. 

Segundo os autores do documento, a exposição de crianças e adolescentes à violência, como vítimas ou testemunhas, gera consequências para o seu desenvolvimento cognitivo, emocional e social.

Como pontua a psicóloga clínica Ana Sorema Gomes, essas crianças também acabam sofrendo algum tipo de violência, pois além de acompanharem o processo de violência das mães, acabam também sofrendo com a ausência da mesma, “o que também gera um grande conflito interno, pois uma criança, teoricamente, ama o pai, não aquele agressor, e muitas vezes ‘perde’ esse contato quando o pai é preso, ou, em alguns casos, se suicida”, menciona. “Essa criança carregará grandes traumas, como medo, pânico e transtornos psicológicos ligados a  depressão e ansiedade”, acrescentou.

Ainda segundo a especialista, tal criança, que também pode ser configurada como vítima, já viveu em um ambiente familiar contaminado por violências, e ia longo prazo, pode se tornar um adulto violento,que cresceu aprendendo a bater e xingar. 

Consoante a isso, a psicóloga Aline Percon explica que uma criança que vivencia o feminicídio pode ter grandes prejuízos na capacidade de se relacionar com outras pessoas, muito em função de ter a desconfiança como um dos traumas do feminicídio. “Dessa forma, suas relações futuras podem se estabelecer com insegurança instabilidade, isto se esse indivíduo também não acabar deixando de construir uma boa rede de apoio por ter se tornado uma pessoa introspectiva ao longo do tempo, também em função de ter vivenciado uma relação conturbada entre os vínculos que deveriam ser sua maior figura de referência e exemplo, seus pais ou tutores”, exemplifica. Os contextos são muitos, mas um sentimento comum entre essas crianças é o de impotência, impotência de proteger alguém e ter a possibilidade de fazer algo a respeito. “Isso é outro traço que deixa marcas futuras e que influencia diretamente na construção de uma personalidade, caso essa criança não tenha o devido suporte diante a situação”, complementa a especialista. 

Felipe Andrade, que também é psicólogo, ressalta ainda que o feminicídio é o último ato de um ciclo de violências no qual a mulher está submetida. “As crianças que presenciam um ato de feminicídio certamente já presenciaram muitas cenas de violência doméstica, nesse sentido essas crianças provavelmente já sofrem com algum prejuízo emocional”, complementa. 

O tratamento para evitar tais efeitos, como esclarece Ana Sorema, segue a orientação inicial de um acompanhamento com profissionais de saúde, “seja psicólogo ou psiquiatra”, pondera. Além disso, o ideal seria colocar essa criança em  um ambiente mais saudável e acolhedor, “pois muitas delas ficam órfãs e sem o contato com os familiares de base (avós, tios)”, relembra.  “Isso, com certeza, é uma questão de saúde pública, que deveria receber mais projetos que amparam e resguardam essas crianças”, defende a profissional.

Na avaliação de Aline, certamente o suporte psicológico será o grande aliado dessa criança para superar esses traumas. É importante, como ela destaca, que haja um trabalho interdisciplinar com psicopedagogos e assistentes sociais também. “Se estivermos falando de famílias carentes, é possível buscar esse apoio nas universidades e centros de assistência social locais, os quais prestam esse suporte de forma gratuita”, propõe. “E de modo geral, mostrar a essa criança de forma efetiva que ela pode ter uma rede de apoio. Se pudermos contar com familiares próximos que se sensibilizam afundo com a situação, melhor ainda. Eles também precisarão do suporte psicológico para lidar com essa situação de forma pessoal e duradoura”, finaliza a profissional.

Como rememora Felipe Andrade, na rede pública há o Conselho Tutelar e o CREAS que fazem esse acolhimento inicial e encaminham para os atendimentos específicos. “Na rede privada temos clínicas particulares que também podem participar nesse processo de acolhimento dessas crianças através de psicoterapias e atendimentos com psiquiatras”, aclara. 

Na justiça

Algumas das famílias entrevistadas se queixaram da falta de oportunidade de participar do processo judicial dos casos. Apesar de a maioria conhecer o histórico de violência doméstica, nem todas foram ouvidas durante a investigação e o processo criminal. Também houve queixas sobre o tratamento dispensado pela mídia ao noticiar os crimes.

Até o momento da conclusão do levantamento 23 dos 34 casos analisados haviam sido julgados. Cinco inquéritos foram arquivados porque o autor cometeu suicídio. Três processos estavam suspensos porque o réu estava foragido e um aguardava a localização de uma testemunha. Dois já haviam cumprido todas as etapas processuais e aguardavam apenas a designação de data para o júri. 

Além disso, dos 23 casos julgados pelo tribunal do júri, 22 réus foram condenados, com penas que variaram de 6 a 31 anos. A pena média foi de 20 anos. O tempo médio entre o crime e a condenação foi de 1 ano e 11 meses. No único processo sem condenação, foi comprovado que o réu era inimputável por sofrer de doença mental. Neste caso, foi aplicada medida de segurança pelo prazo mínimo de 3 anos. 

Os responsáveis pela pesquisa defendem que a efetiva participação dos familiares das vítimas na investigação e no julgamento faz parte do processo de reparação que a Justiça deve ofertar. “Essa reparação deve envolver o reconhecimento do grave dano gerado por meio do acesso ao direito à justiça, com o autor do crime identificado e punido, do acesso ao direito à verdade, com o conhecimento das motivações para o crime, e do acesso ao direito ao respeito à memória da vítima, evitando-se julgamentos de valor e desqualificações da mulher durante o processo judicial”, concluem os autores.

Em nota, a SSP-DF informou que as forças de segurança do DF intensificaram não só o enfrentamento ao feminicídio, com a ampliação das forças no atendimento às mulheres, bem como o reforço nos mecanismos de proteção às vítimas de violência. A pasta também esclarece ainda que conta com o programa Mulher Mais Segura, programa que reúne medidas, iniciativas e ações de enfrentamento aos crimes de gênero.

Denúncias 

Ligue 190 – Polícia Militar do Distrito Federal (PMDF). Uma viatura da Polícia Militar é enviada imediatamente até o local para o atendimento. Disponível 24h por dia, todos os dias. Ligação gratuita.

Ligue 197 – Polícia Civil do Distrito Federal (PCDF)

A Polícia Civil do Distrito Federal conta, ainda, com canais de denúncia nos quais é garantido o sigilo.

Quatro meios para recebimento de denúncias são disponibilizados pela Polícia Civil (PCDF): o 197 Denúncia on-line, o telefone 197 Opção 0 (zero), o e-mail [email protected] e o WhatsApp (61) 98626-1197.

Ligue 180 – Central de Atendimento à Mulher

Ligue 180 – Central de Atendimento à Mulher

Delegacia Especial de Atendimento à Mulher – DEAM

Diante de qualquer situação que configure violência doméstica, a mulher deve registrar a ocorrência em uma delegacia de polícia, preferencialmente nas Delegacias Especiais de Atendimento à Mulher – DEAM, que funciona 24 horas por dia, todos os dias.

Endereço: EQS 204/205, Asa Sul, Brasília-DF, CEP: 70234-400

Telefones: 3207-6172 / 3207-6195 / 98362-5673E-mail:[email protected]

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