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Brasília

Deficiência não é limite, pega a visão de um vencedor!

Genival Ribeiro é um dos trabalhadores com deficiência nos viveiros da Novacap. Ele já participou da São Silvestre e de duas ultramaratonas de ciclismo

Afonso Ventania

31/01/2024 5h59

Foto: Afonso Ventania/ Jornal de Brasília

“Meu sonho era conhecer o rosto dos meus filhos, mas poucos dias antes do nascimento da minha primogênita eu fiquei cego”, lamenta Genival Ribeiro, que é pai de um casal. O paraibano de Piancó é um homem baixo de estatura e esculpido pela resiliência sertaneja. Não se entrega diante dos problemas e dos desafios, por mais difíceis que sejam. Muito falante, usa as palavras em alta velocidade como que para compensar a falta dos olhos. Parece afobado e que está sempre atrasado. Orgulhoso, faz questão de buscar os olhos do interlocutor enquanto conversa.

“O trabalho e o esporte foram ferramentas indispensáveis para eu superar a minha cegueira. Já não tenho mais vergonha e procuro ‘olhar’ para quem conversa comigo”.

Genival, de 56 anos, é uma das nove pessoas com deficiência que trabalha no Viveiro I da Companhia Urbanizadora da Nova Capital (Novacap), localizado no Park Way e onde são desenvolvidas as mudas de flores, arbustos, palmeiras e plantas de sombra. São 500 espécies ao todo. Fundado em 1962, o espaço foi reformado recentemente e tem 56 funcionários para cuidar dos 26 hectares com estufas, áreas de produção e outras dependências. O segundo viveiro, no Setor de Oficinas Norte, foi criado em 1972 para o cultivo de árvores em 78 hectares.

A produção e a variedade de ambos garantem a Brasília o título de cidade-parque, conceito idealizado pelo urbanista Lúcio Costa. Atualmente, há no Distrito Federal 5,5 milhões de árvores, 186 milhões de metros quadrados de grama e 650 jardins públicos. Desse total, 950 mil são árvores frutíferas de 35 espécies diferentes.

A chefe da Divisão de Agronomia da Novacap, Janaína Gonzales, explica que, para preservar a integridade física dos trabalhadores com deficiência, toda a estrutura recebeu projeto de acessibilidade e o tráfego de veículos automotores é restrito. “Desde o início, implementamos esses protocolos de segurança para proteger nossos funcionários que têm deficiência. Os carros de visitantes e de funcionários devem ficar estacionados na entrada do viveiro”. Segundo ela, profissionais com as habilidades de Genival são indispensáveis em alguns tipos de trabalho. “Antes ele trabalhava no beneficiamento de sementes e agora na reciclagem de substratos. Em ambos setores, ele demonstrou um rendimento muito superior em comparação com uma pessoa que enxerga devido ao tato mais desenvolvido”, afirma.

O paraibano começou a trabalhar na Novacap em 1992 e é uma das quatros pessoas com deficiência visual no órgão atualmente. As demais têm deficiência física e auditiva. Depois do acidente automobilístico que tirou a sua visão, aos 21 anos, ele não podia voltar a trabalhar na mercearia da família. Era o começo de uma vida na escuridão, mas não seria o fim. Ele descobriria que, a partir daquele momento haveria outras possibilidades. Afinal, o mundo é percebido pelos cinco sentidos. E na falta de um deles, os demais compensam e são mais desenvolvidos. Genival precisou aprender a distinguir cheiros, identificar diferentes texturas com o tato e ouvir os timbres dos ruídos da cidade para “enxergar” o invisível aos olhos e sentir a capital de todos os brasileiros.

Desempregado e com dois filhos para criar, foi convencido a voltar a estudar por uma senhora que se prontificou a ajudar assim que soube da situação de Genival. “Era a sogra da minha cunhada. Ela ficou preocupada com a minha situação e descobriu uma escola para deficientes na 612 Sul onde eu aprenderia braile e outras habilidades. Eu resisti porque me sentia envergonhado em ter de voltar a frequentar o colégio. Ainda mais sem a visão. Mas ela não desistiu de mim e fez a minha matrícula. No primeiro dia de aula, me buscou em casa no carro dela, na Ceilândia, e me levou até a escola. Ela me arrastou até a aula. Que Deus a tenha”, conta Genival lamentando a morte da mulher que mudou a sua vida para melhor.

Anos mais tarde, já mais confiante e independente ele entrou na Novacap como prestador de serviço de uma associação conveniada. Seis anos depois, em 1998, ele decidiu apostar em um futuro mais estável e, animado e com o apoio da família, o pequeno paraibano que havia estudado pouco e que tinha apenas o ensino fundamental enfiou a cara nos estudos e….passou! “O que eu ganhava antes era muito pouco e estava sofrendo para construir um barraco de madeirite na época. Depois eu consegui formar meus dois filhos trabalhando aqui na Novacap. Minha filha é veterinária e o meu filho é farmacêutico”, comemora.

Dessa vez, a determinação herdada da família nordestina garantiu a sobrevivência com dignidade de sua família. Passou por vários setores e hoje atua na reciclagem de substratos e sacos plásticos que envolvem as mudas. O trabalho consiste em tentar tirar o máximo de material de cada embalagem, para que seja reutilizado em um novo plantio. O ciclo da vida das plantas retrata a vida de Genival que não se entregou e reciclou a própria existência. Porque não há nada mais triste do que morrer em vida. Mesmo com as luzes apagadas do mundo, ele descobriu outras dimensões do mundo. E é feliz assim! E isso basta.

“Sinto que o meu trabalho é muito importante para a sociedade e me sinto honrado por isso. Infelizmente eu não enxergo, mas os meus filhos, netos e todos os brasilienses têm a oportunidade de ver o resultado do meu trabalho. Sinto-me realizado”.

Superação pelo esporte

Além do trabalho, Genival usou o esporte como ferramenta de superação. Quando recebeu a notícia de que estava cego ainda no hospital, o paraibano pensou até em desistir da vida. O que levantou sua autoestima foi o nascimento da filha primogênita dali a 15 dias. Ele não poderia desistir. Era preciso encontrar uma maneira de curtir a nova integrante da família Ribeiro.

Inquieto, decidiu voltar a pedalar. Ele sempre pedalava antes do acidente que tirou sua visão. Pedalava para entregar as mercadorias da mercearia onde trabalhava e também com os amigos no fim de semana. Mas como pedalar sem enxergar? Foi quando soube do projeto DV na Trilha em que condutores voluntários pilotam bicicletas duplas carregando os deficientes visuais. (Link da reportagem). Genival tornou-se membro do grupo e, sempre que pode, pedala no Jardim Botânico. “Já participei até de duas ultramaratonas de ciclismo: uma de 100k e outra de 200k”, conta.

Contudo, ele precisava de mais adrenalina para distrair sua mente e amenizar os efeitos da escuridão eterna. E então começou a correr. Não dos problemas, mas de objetivos. Metas esportivas. Com empenho e dedicação, conseguiu participar da São Silvestre em 2019. “Corro pelo menos três vezes na semana antes do trabalho e, depois, ainda costumo pedalar”, diz.

Preconceito

Nesses 35 anos que Genival anda pela cidade como deficiente visual, de casa ao trabalho e vice-versa, já sentiu na pele as dificuldades de quem não enxerga. São muitos os obstáculos físicos, mas o pior, segundo ele, é o preconceito. “As pessoas precisam ter mais amor ao próximo e olhar para o deficiente e para o idoso com mais carinho e, principalmente, sem preconceito. Nós gostamos quando recebemos ajuda, mas não somos coitados. Não nos desprezem ou nos joguem para baixo porque somos todos iguais”, diz.

E, antes de encerrar a reportagem, Genival manda uma mensagem motivacional para aquelas pessoas com problemas. “Se você acha que está passando por uma dificuldade, olhe ao seu redor. Tem muita gente saudável, com os olhos bons, com alimentação em dia que fica falando mal da vida. Se olhar para o lado vai perceber que tem muita gente que está vivendo uma situação muito pior. E ainda tem gente saudável que não quer trabalhar e parte para o crime. Veja o meu exemplo e dos meus companheiros deficientes. Saímos todos os dias para trabalhar embaixo de chuva ou do sol com a mesma determinação”, ensina.

A história de superação de Genival Ribeiro ensina que é possível olhar para si mesmo e fazer uma escolha: encontrar um novo sentido para substituir a visão que lhe foi tirada. E ele encontrou um mundo novo, sem a miopia da objetividade do olhar. Percebeu que o mundo tem texturas, ruídos, sabores e cheiros que o tornam ainda mais fascinante. Mais completo. Mais intenso. E, ao descobrir essa intensidade, o servidor público aceitou viver de uma maneira diferente. A ausência da luz, ele entendeu, não é o fim do túnel, mas uma nova possibilidade de sentir o que há ao redor, as pessoas, o ambiente. Imergir na escuridão é um exercício de liberdade, de autodeterminação, de praticar o livre-arbítrio. Genival ousou, ao negar ser dependente, e a lutar pelo seu espaço.

Ele escancara, para quem quer ver, que quem consegue perceber a própria vida de outros ângulos, com generosidade e sem preconceito, torna-se capaz de tocar a vida do outro. Genival nos ensina que existir é um exercício cotidiano de resistência.

Saiba mais:

Anualmente, os dois viveiros da Novacap desenvolvem mais de 80 espécies de flores, mais de 300 espécies de arbustos, de plantas de sombra e palmeiras, além de mais de 200 tipos de árvores – em que 60% são provenientes do Cerrado.

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