Menu
Brasília

Pedal da inclusão

Projeto social oferece esporte e lazer aos deficientes visuais nas trilhas do Jardim Botânico

Afonso Ventania

15/05/2023 5h00

Foto: DV na Trilha/Divulgação

Deslizar por trilhas em uma bicicleta MTB (moutain bike), desviar de galhos de árvores em single tracks super técnicos, saltar obstáculos como raízes e rampas naturais em estradas de terra. Para qualquer ciclista já é um desafio. Agora imagine fazer tudo isso sem enxergar. Seria possível?

Para os deficientes visuais do projeto DV na Trilha é apenas a rotina de mais uma manhã comum de sábado de treino.

Quinzenalmente, voluntários e ciclistas se reúnem, a partir das 9h, no Jardim Botânico de Brasília, para circularem nas trilhas daquela região. Não praticam só o exercício físico, mas o pleno e inestimável exercício da cidadania.

São homens e mulheres de todas as idades que perderam a visão ou nunca enxergaram e que, graças ao espírito solidário de ciclistas e de pessoas altruístas, desfrutam a sensação de liberdade que só as duas rodas podem oferecer. 

O objetivo não é competir, mas viver a experiência de pedalar ao ar livre para sentir o vento no rosto e a adrenalina liberada pela atividade física. Ali ninguém quer deixar o outro para trás. Não há adversários. Ao contrário. São amigos que encontram na união de forças a inspiração para superar as limitações e desenvolver as habilidades esportivas de quem um dia perdeu a esperança até de viver. “Todos juntos somos fortes”, gritam os atletas, em uníssono, após cada treino concluído. 

O pelotão de ciclistas condutores e deficientes visuais em bicicletas tandem (para dois ciclistas) prova que o limite do ser humano está na mente e não no corpo. Em movimentos sincronizados, compartilham a paixão pela bicicleta e pedalam por todo o circuito de trilhas se divertindo. Curtindo a natureza. É emocionante perceber naqueles olhos que perderam a visão, a expressão de garra e determinação e, acima de tudo, a vontade de seguir adiante. 

“O projeto DV na Trilha me salvou da depressão. Eu renasci através do esporte e mostra que estou vivo”, conta Fabiano Cesário, há 10 anos no projeto. Ele perdeu a visão e o olfato após tomar três tiros na cabeça em um assalto quando retornava do trabalho para casa. 

Inconformado, entrou em um quadro depressivo até conhecer o DV na Trilha por meio de um amigo que conhecia uma participante do projeto. A identificação foi tão rápida e intensa que ele, hoje aposentado, se tornou atleta e passou a participar de várias competições de ciclismo. 

Fabiano Santana. Foto: DV na Trilha/Divulgação

Para o administrador de empresas e ciclista frequente do projeto, Beto Leão, o condutor aprende muito com o atleta DV. “Quem enxerga não tem a dimensão das dificuldades dos deficientes visuais. A energia que eles demonstram para chegar até aqui, pegando ônibus, carona, para pedalar é impressionante. Nós é que aprendemos muito com a força de vontade deles”, conta. 

Fabiano Santana à esquerda e Beto Leão à direita. Foto: DV na Trilha/Divulgação

Logística

O projeto DV na Trilha nasceu em 2004 em um evento natalino. Com o sucesso da iniciativa, foi decidido transformar essa experiência em atividades regulares quinzenais. “E já estamos há quase 20 anos promovendo a inclusão da pessoa com deficiência visual por meio do ciclismo e do esporte em geral”, comemora Simone Consenza, uma das fundadoras da proposta. 

Para manter o projeto, além dos voluntários, o DV na Trilha recebe doações, apoios, patrocínios eventuais e vende camisetas casuais e de ciclismo. “Não temos apoio do governo e, por isso, contamos com boa vontade de empresários locais e com algumas “vaquinhas” que fazemos entre os voluntários para bancar as despesas”, acrescenta Larissa Moreira, uma das coordenadoras. 

O único apoio fixo é da administração do Jardim Botânico que oferece a isenção da taxa de entrada para os ciclistas condutores e DVs. E também cede o espaço para guardar as bicicletas do grupo. 

Simone ressalta a importância também da participação efetiva de condutores experientes. “Sempre precisamos de condutores. Algumas vezes não podemos chamar as pessoas com deficiência visual que poderíamos porque não temos condutores suficientes”, lamenta. 

Simone Consenza. Foto: DV na Trilha/Divulgação

Na própria pele (relato)

Para produzir a reportagem para o Jornal de Brasília, usei uma das bicicletas tandem oferecida pela organização. Como era necessário gravar entrevistas e levar os equipamentos de filmagem, fui de carona com o experiente piloto Fernando Ômega, fundador do Pedal Noturno DF. 

No meio do percurso, eu soube que existe uma espécie de “batismo” para os “ciclistas de primeira viagem” no projeto. Fui vendado pelos participantes para que eu sentisse na pele a sensação de pedalar nas trilhas sem enxergar. 

Fiquei impressionado como o meu corpo entrou na “defensiva” assim que os meus olhos foram vendados. Notei também que os meus outros sentidos, principalmente a audição e o olfato foram gradativamente se ampliando. Chegou um momento em que sentia cheiros de plantas e até de animais que não conseguia identificar. 

Também pude perceber ruídos que normalmente não ouviria com tanta qualidade de olhos abertos. Ouvia o barulho das correntes das bicicletas, diálogos dos ciclistas, as rodas sobre o cascalho, o balanço das árvores. Tudo ao mesmo tempo e com muita precisão. 

“Apesar de não enxergarem, os DVs têm outra percepção da trilha com cheiros e sons. Eles identificam frutas e animais muitos antes da gente. Vale o aprendizado”, acrescenta Fernando, o meu condutor.

Serviço
DV na Trilha
Local: Jardim Botânico (encontro no estacionamento do restaurante)
Hora: a partir das 9h
Quando: quinzenalmente, aos sábados (consultar datas no Instagram: @dvnatrilhaoficial ou falar com Larissa no número (61) 99982-3147)

    Você também pode gostar

    Assine nossa newsletter e
    mantenha-se bem informado