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Psicanálise da vida cotidiana
Psicanálise da vida cotidiana

A leitura angustiante e alegre de Clarice Lispector

Clarice Lispector, ucraniana naturalizada brasileira, tem sido atualmente relida e lida em todos os cantos do planeta

Carlos de Almeida Vieira

23/01/2023 11h36

Foto: Reprodução

“Este livro é como um livro qualquer. Mas eu ficaria contente se fosse lido apenas por pessoas de alma já formada. Aquelas que sabem que a aproximação, do que quer que seja, se faz gradualmente e penosamente—atravessando inclusive o oposto daquilo que se vai aproximar. Aquelas pessoas que, só elas, entenderão bem devagar que este livro nada tira de ninguém…”

Introdução de Clarice in “A Paixão segundo G.H.

Clarice Lispector, ucraniana naturalizada brasileira, tem sido atualmente relida e lida em todos os cantos do planeta. Ultimamente, no Brasil, pela passagem de seu aniversário de 100 anos, duas publicações importantes foram lançadas: “Um século de Clarice Lispector – Ensaios Críticos, organizados por  Yudith Rosenbaum e Cleusa Rios P. Passos, pela Editora Fósforo, e “Quanto ao Futuro – Clarice, organizado por Júlio Diniz e editado por Bazar do Tempo e Editora PUC do Rio. Ainda em 2013, na França-Paris, foi lançado pela Editora L’Harmattan o livro: “Études, Clarice Lispector: une pensée en écriture pour notre temps”, vários  ensaios sob a direção da Nadia Setti e Maria Graciete Besse.

A Editora Rocco, também em comemoração ao centenário da Autora, editou sua obra, que vem acompanhada sempre de um artigo de  crítica literária sobre o texto clariciano, além de  presentear em cada edição, ao final da orelha, de pinturas de Clarice. Ou seja, leitor, Clarice volta ao universo literário, agora mais do que nunca, como uma das maiores escritoras dos tempos modernos, junto a autores como Virgínia Woolf, James Joyce, Proust, Guimarães Rosa e tantos outros que revolucionaram a escrita literária, saindo da forma de escrever canônica para uma liberdade de criar, onde o intimismo prepondera sobre o romance clássico, das estórias com começo, meio e fim. Usando um metáfora musical, esses autores e aqui Clarice, a escrita é “atonal, dissonante, sem usar acordes fechados, compondo e escrevendo de uma maneira helicoidal, geométrica, aberta, sem resolução. É óbvio que essa escrita clariciana deixa o leitor meio tonto, com certo desconforto emocional, pois Lispector sempre primou por extrair da realidade sensorial, objetiva, concreta, aquilo que esconde os sentimentos mais profundo do  ser humano: angústia, dúvidas, incertezas, dor, prazer, sofrimento, perguntas sem respostas. Na “Paixão segundo G.H., Clarice diz que a vida fica mais leve e pesada quando a pessoa deixa de lado querer saber o começo e o fim das coisas. O que nos interessa viver é o “instante já”, o presente. Ainda nesse romance, que, aliás,  ela nunca afirmava que escrevia romances, ela escrevia, há uma passagem bela  e sofrida de se sentir: “resolvi trocar o destino pela probabilidade”.Ou seja, os livros, as crônicas, os contos e suas cartas, são verdadeiros textos advindo do seu interior, às vezes autobiográficos, filosóficos, psicanalíticos, que remetem ao leitor não lê-la somente, mas se ler. É uma leitura analítica, que requer “alma já formada”, e que é impossível satisfazer se a leitura da maioria das pessoas é uma leitura consumista, rasa, vazia, à procura de um “paraíso perdido”. Clarice é realidade, é grito, é sangue, é  amor, é o que se é, a verdade das coisas!

Na página 119 da última edição do livro “Um sopro de vida”, livro escrito próximo a sua morte, Clarice, na personagem ngela, em seu estilo de prosa poética, escreve sobre o que ela chamou de “Mãe-Coisa”. Vejamos a bela descrição, descrição que eriça os pêlos quando sentimos suas palavras: “Eu me abri e você de mim nasceu. Um dia eu me abri e você nasceu para você mesmo. Quanto ouro correu. E quanto rico sangue se derramou. Mas valeu a pena: és pérola de meu coração que tem forma de sino de pura prata. Eu me esvaí. E tu nasceste. E me apaguei para que tu tivesses a liberdade de um deus. És pagão mas tem a benção da mãe. E.E a mãe sou eu. Mãe túmida. Mãe seiva. Mãe árvore. Mãe que dá e nada pede de volta. Mãe música de órgão… Mas quando quiseres ficar só com tua namorada-esposa cobre minha cara doce com um pano escuro e fosco – eu nada verei. Eu sou mãe-coisa pendurada na parede com respeito e dor. Mas que funda alegria de ser mãe. Mãe é doida. É tão doida que dela nasceram filhos. Eu me alimento com ricas comidas e tu mamas em um leite grosso e fosforescente. Eu sou o teu talismã”.

Sinta, ledor, a beleza estética de uma escritura que parece que pinta um quadro quando escreve. Retira da observação sobre nossas mães o que raramente sentimos, pensamos e somos gratos.

Professor João Cezar de Castro Rocha, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, escreve no final da orelha do livro “Um Sopro de Vida”: “Estamos à beira de uma eclosão. À beira de conhecer nós mesmos. À beira do ano 2000…para reconhecer sua rara força e atualidade, precisamos inventar novas leituras de Clarice Lispector. Atitude que provavelmente agradaria a quem propôs:”Escrever é uma indagação. É assim?

Clarice é um anjo que, com  uma mão nos ajuda a descer aos nossos infernos interiores, e com outra nos aponta a experiência de Ser-nós-mesmos,  procurar nossa liberdade sem  nos ater a destinos e sim sofrermos a alegria e a probabilidade de aceitar o desafio de viver-vivos, criativos,corajosos e fortes.

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