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Do Alto da Torre
Do Alto da Torre

A guerra entre Trump e o jornalismo norte-americano

E, sim, foram anos de guerra permanente, desde a campanha eleitoral até agora, quando tenta entrar em outra luta pela presidência

Eduardo Brito

25/12/2023 14h07

(Photo by – / FULTON COUNTY SHERIFF’S OFFICE / AFP) / RESTRICTED TO EDITORIAL USE – MANDATORY CREDIT “AFP PHOTO / FULTON COUNTY SHERIFF’S OFFICE ” – NO MARKETING – NO ADVERTISING CAMPAIGNS – DISTRIBUTED AS A SERVICE TO CLIENTS – RESTRICTED TO EDITORIAL USE – MANDATORY CREDIT “AFP PHOTO / FULTON COUNTY SHERIFF’S OFFICE ” – NO MARKETING – NO ADVERTISING CAMPAIGNS – DISTRIBUTED AS A SERVICE TO CLIENTS /

Donald Trump mal acabava de ser eleito quando uma repórter do Washington Post lhe perguntou porque atacava tanto a imprensa. Afinal, ele acabava de dizer mais uma vez que os jornais e os jornalistas, de qualquer meio de comunicação, eram desonestos e inimigos do povo americano. Trump teve um lampejo de sinceridade. Respondeu-lhe: “quero desmoralizar vocês, para que ninguém acredite quando vocês vierem atrás de mim”. E, sim, foram anos de guerra permanente, desde a campanha eleitoral até agora, quando tenta entrar em outra luta pela presidência.

Tudo isso aconteceu no momento em que a mídia, em especial os jornais impressos, estavam em outra guerra, a de se viabilizarem no meio digital. Quando Trump desafiou a então favorita Hillary Clinton para chegar à Casa Branca, os jornais estavam começando a se reequilibrar financeiramente, após o desabamento dos impressos e a recuperação, enfim eficaz, pelas edições digitais. Uma luta que tem tudo para se tornar fascinante.

Ela é mostrada em todos os seus ângulos, muitos dramáticos, por um livraço lançado há pouco nos Estados Unidos, ainda sem tradução no Brasil. É Collision of Power (Colisão de Poder), que tem como subtítulo Trump, Bezos and the Washington Post. Bezos, claro, é o dono da riquíssima Amazon, que comprara havia pouco o Washington Post. E o autor, Martin Baron, um dos mais respeitados jornalistas norte-americanos, que dirigira o Boston Globe e era o diretor de redação do Washington Post.

Mostra uma época em que surgiu, na sua roupagem atual, a expressão “fake News”. Hoje usada pelo PT para explicar o avanço bolsonarista nas redes sociais, ela teve sua introdução na política por obra e arte de Donald Trump que usava a expressão para qualificar qualquer matéria da grande mídia que o desagradava. Também surgiu aí a expressão “fatos alternativos” ou “verdades alternativas”, ou seja, o uso por Trump de mentiras, puras e simples, a partir de sua autoridade de presidenciável e, depois, de presidente. Os neologismos serão muito usados no livro, em particular porque Trump odiava jornais, jornalistas e Jeff Bezos, não necessariamente nessa ordem.

Collision of Power é menos um livro de história do que uma crônica emocionante da política e do jornalismo durante uma década de turbulência. Baron ingressou no Post em 2013 e se aposentou em 2021, época de um cenário de convulsão eleitoral, uma indicação contestada à Suprema Corte, dois julgamentos de impeachment e uma tentativa de golpe patrocinada da Casa Branca. O livro conta na verdade três histórias distintas, mas sobrepostas. A primeira é a de um corpo de imprensa lutando para mostrar com clareza um demagogo desenfreado que ignorava normas e limites convencionais, que habilmente posicionou a imprensa como sua inimiga.

O livro começa com Trump oferecendo suas reflexões a Bezos, junto com Baron; o editor geral do Post, Fred Ryan; e seu editor de página editorial, Fred Hiatt, durante um jantar na Casa Branca no exato momento em que o jornal divulgou a notícia de que o procurador especial do Departamento de Justiça, Robert S. Mueller III, estava investigando os negócios do genro de Trump, Jared Kushner. E, mais, que havia suspeitas de que o governo russo havia pirateado a internet para ajudar a eleger o próprio Trump.

A delegação do Post tentou deixar claro que não haveria nada suspeito em relação à cobertura, mas o presidente ligou para Bezos na manhã seguinte para pedir que o Post fosse “mais justo comigo” acrescentando: Não sei se você se envolve na redação, mas tenho certeza de que o faz em algum grau”. Bezos, escreve Baron, não aceitaria ser bajulado e muito menos submetido à cortejado nem submetido à submissão.

A partir daí, a situação tornou-se uma guerra declarada. Quer dizer, declarada de um lado só. Trump não perderia uma só chance de atacar o jornal, inclusive só o chamando de “Amazon Washington Post”, ou apenas de “Amazon Post”, de forma a insinuar que o jornal e sua equipe constituíam apenas instrumentos do poder econômico da Amazon de Bezos e que não estariam interessados em dar notícias – em resumo, fazer jornalismo – mas apenas em defender a empresa e seu dono. Isso significaria se curvar a motivações financeiras – o que, assegurava o presidente dos Estados Unidos – significava usar todos os recursos da mídia para atacar Trump.

Em resumo, se Trump atacava todos os veículos de comunicação que não o bajulavam, o que incluía o The New York Times, as principais redes de televisão norte-americanas, a CNN e outros veículos, era contra o Washington Post que mais destilava seu ódio. Ele se declarava abertamente em guerra. Foi o que motivou uma frase famosa de Martin Baron. Quando lhe perguntaram se, como dizia Trump, o Post estava em guerra – em inglês War – contra ele, Baron cunhou a resposta épica. “We are not at war with the administration, we are at work”, disparou. Ou seja: “nós não estamos em guerra, nós estamos a trabalho”. A repercussão foi enorme e se transformou em uma espécie de bordão contra os que não se curvavam às fake News, às “verdades alternativas” (ou seja, as mentiras) e ao ódio de Trump e toda a mídia de todo o mundo.

Fica o registro, óbvio, de que nada disso acabou, na medida em que Trump está novamente em campanha para a presidência dos Estados Unidos e mostra o mesmo espírito bélico. Tanto assim que há pouco, quando lhe perguntaram se queria na verdade ser ditador, respondeu: garanto que não serei ditador durante meu mandato, mas apenas no primeiro dia. Ou seja, que após a posse instalaria, sim, uma ditadura. É bravata, claro, mas mostra que desde antes mesmo do início oficial da campanha Trump dispara “verdades alternativas”. E verdades alternativas com enorme poder de trazer risco institucional à maior democracia do mundo.

Cerca de um ano e meio depois de adquirir o Washington Post por US$ 250 milhões em 2013, Jeff Bezos disse aos executivos do jornal para criar um slogan que marcasse seu compromisso com a liberdade. “Uma ideia à qual quero pertencer”, foi a diretriz de Bezos. “Eu pagaria facilmente 100 dólares por essa ideia”, brincou. O jornal convocou comitês e contratou consultores de branding. Eles chegaram por exemplo a “Povo livre exige informação”, mas MacKenzie Scott, esposa de Bezos na época, vetou. O slogan que ele finalmente aprovou, “A democracia morre na escuridão”, foi revelado em fevereiro de 2017, semanas após a posse de Donald Trump, e se revelou altamente apropriado.

No rumo do jornalismo digital

No segundo tema do livro, Baron mostra a luta do jornal, já sob o controle de Bezos, para dar o salto rumo ao modelo digital, na verdade para garantir sua sobrevivência. A percepção de que o jornalismo digital seria a única forma de manter a viabilidade econômica da empresa, claro, já existia pelo menos dez anos antes, mas Bezos turbinou esse movimento. Foi Bezos que deu a exata medida disso. Ele sabia, claro, que o Washington Post devia sua repercussão nacional e internacional, bem como o seu peso entre os norte-americanos, à cobertura da capital, onde tinha mais de 90% da circulação e praticamente a totalidade dos índices de leitura da população bem informada.

A essa altura Baron já era o editor executivo, com poderes quase absolutos na redação, trazido pela família Graham, vindo do Boston Globe, onde ganhou notoriedade por uma série de reportagens excepcionais. Chegou a ser o personagem principal, representado por Liev Schreiber, no filme Spotlight, o filme vencedor do Oscar de 2015 que retratou uma investigação do Boston Globe sobre predação sexual por padres católicos. Escancarou assim um escândalo que já acenava com repercussão mundial e que mexeu profundamente com a Igreja. No conjunto, as redações que Baron liderou ganharam 17 prêmios Pulitzer, 10 deles no Washington Post. O Pulitzer é o principal prêmio jornalístico do mundo, senão o maior de todos.

Na virada do milênio, o Post tinha a circulação de cerca de 800 mil exemplares diários, na edição papel, claro. Ao ser vendido para Bezos estava em pouco mais de 420 mil e o número de exemplares estava em queda livre. Claro, a essa altura já era absolutamente evidente a necessidade de acelerar a migração para o digital. Todos sabiam disso – e os demais jornais também. Mas Bezos deu a medida que era necessária. Avisou que estava muito bem que o jornal tivesse 90% do mercado da capital norte-americana, ainda seu maior trunfo. Mas o que interessava era ter proporção muito mais alta no conjunto da população – ainda mais que toda a sua venda em Washington significava uns 3% do mercado global.

Essa foi a grande evolução. O Washington Post manteve, senão elevou ainda mais seu padrão jornalístico, e deu um salto para 3 milhões de assinantes digitais em 2020, a partir de um milhão em 2017. Hoje está em torno de 4 milhões. Financeiramente está saudável, com lucros amplos e mantendo o quadro de jornalistas. Após algum declínio, até amplia sua cobertura, abrindo sucursais em pontos remotos do mundo.

Um adversário capaz de tudo

Em resumo, o livro é, ao mesmo tempo, revelador da administração de Jeff Bezos no The Washington Post, uma crônica de como Donald Trump tentou poderosamente desacreditar o Post e afundar a Amazon, e uma história tensa, às vezes emocionante, de como o Post navegou por um tempo perigoso no jornalismo. Em todo o tumulto, Bezos surge como determinado, disciplinado, analítico, focado, estratégico em seu pensamento e notavelmente calmo diante de um Trump perpetuamente irritado que usou implacavelmente seu púlpito presidencial para atacar a Amazon.

Bezos fundou a Amazon, mas ela não está conectada ao Post, que Bezos comprou com seus próprios fundos e, no dizer de Baron, parece genuinamente gostar de possuir. Baron, editor-executivo do Post de 2013 a 2021, pesquisou extensivamente e pensou profundamente sobre como cobrir a presidência sem precedentes de Donald Trump. Baron escreve que “precisava me preparar para sua marca de presidência” e mostra como enfrentar autoritarismo e manipulação da opinião pública.

Mostra, enfim, um Trump capaz de tudo. Tudo mesmo. No plano empresarial, tenta fazer com que os Correios norte-americanos torpedeiem as entregas de encomendas que permitiram a Amazon se estruturar e crescer. Mais tarde, procura sabotar a presença da Amazon em uma grande licitação feita pelas Forças Armadas norte-americanas, pressionando sucessivos ministros para que barrassem a presença da empresa de Bezos. O jogo foi tão pesado que a licitação só terminou já no governo Biden, com um acordo entre as quatro empresas que disputavam o contrato, entre elas Amazon e Microsoft.

No plano internacional, à parte a manipulação russa, usa o poder militar e diplomático norte-americano para pressionar a Ucrânia de modo a expor o filho do vice-presidente Joe Biden, por ser o único adversário que temia na reeleição. E mostra também como Trump levou a presidência norte-americana a caminhos nunca traçados antes, destruindo até aliados – como Rudy Giuliani, que passou de um admirado prefeito de Nova York a um sabujo capaz de atos da maior sordidez – e não hesitando até em esforços para destruir instituições políticas centenárias para obter proveito próprio.

Trump atacou a imprensa até seu último minuto de governo. Depois piorou, em especial quando até a Fox News de seu aliado Rupert Murdoch reagiu a sua tentativa de golpe de estado, com a tomada do Capitólio por uma horda desordeira, na maior parte de supremacistas brancos. Hoje candidato de novo, Trump retoma os ataques à imprensa e o uso de “verdades alternativas”, como a de governar como ditador. Acaba de dizer que “o The New York Times e o Washington Post, esses jornais horríveis, logo estarão fora do mercado, e para sempre” quando seu segundo mandato terminar

O jogo está longe de terminar. Mas a resistência está funcionando. O Washington Post nunca teve índices tão altos de leitura. E, em vez de perder dinheiro, Bezos está cada vez mais rico.

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