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Ciência da Psicologia
Ciência da Psicologia

A massa, quando amassada, cresce

Atos terroristas do último domingo levantam diversas teorias que nos levam a entender melhor o ocorrido

Demerval Bruzzi (CRP 01/21380)

10/01/2023 5h00

Atualizada 09/01/2023 15h59

Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil

Os fatos ocorridos no último domingo (8), onde parte de uma população indignada com os resultados das ultimas eleições (vejam o post ‘Por que votamos em quem votamos’) aliada ao fato de que medidas e decisões monocráticas que ferem a Constituição Federal (de acordo com especialistas) foram tomadas, afrontando ainda mais aqueles que se sentem lesados, acenderam o estopim para atos de vandalismo em Brasília. Com quebradeira no Palácio do Planalto, Superior Tribunal Federal, e Congresso, parte daqueles que protestavam utilizaram da violência contra o patrimônio público para fazer valer suas indignações ou apenas extravasar sua frustração.

Do outro lado, palavras e frases como “nojo do que está ocorrendo”, “golpistas”, “baderneiros”, “cadeia neles” foram ecoadas por diversos meios de comunicação por todo o Brasil, criando não só um alarde perigoso, dado o estado de ânimo, mas acima de tudo,
esquecendo-se do passado recente, com protestos liderados por aqueles que hoje lideram.

Um erro não pode sobrepor e nem justificar o outro, pois corremos o risco de reescrever parte de uma historia transferindo a culpa de um lado para outro. E neste ponto a psicologia tem muito a explicar.

Antes que o amigo leitor pense que estou defendendo A ou B, a ideia deste ensaio, a exemplo de todos os demais já publicados, não é julgar, apontar, elogiar, ou mesmo condenar (apesar de que atos violentos, sejam quais forem, precisam ser drasticamente condenados). O intuito é apresentar a visão da ciência da psicologia, no caso, acerca dos fatos ocorridos. E para isso, hoje apresento ao amigo leitor algo a respeito da teoria das massas, passando por Gustave Le Bon e Sigmund Freud, até os dias atuais.

Le Bon desenvolveu a visão de que multidões não são a soma de suas partes individuais, propondo que, dentro de um grupo, forma-se uma nova entidade psicológica cujas características são determinadas pelo “Inconsciente coletivo”. Baseado nesta linha, Freud desenvolveu sua teoria exposta no texto ‘Psicologia das Massas e Análise do EU’, que viria a ser um dos mais lidos, e que, em minha opinião, aproxima ainda mais a psicanálise como uma percussora ativa da psicologia social.

De acordo com a teoria freudiana do comportamento de massas, o escrito afirma que, quando uma pessoa se torna membro de uma multidão, sua mente inconsciente é liberta. Isso acontece porque as restrições do superego e o núcleo moral da consciência são relaxadas, enfraquecidas. O indivíduo, então, tende a seguir o líder carismático da massa. Assim, em uma multidão, o senso de universalidade de comportamento e o enfraquecimento de responsabilidade individual influenciam fortemente o comportamento coletivo emergente, à medida que o número de pessoas no grupo cresce. Por isso, este campo abrange não apenas o estudo do comportamento individual de membros em uma multidão, mas também o comportamento da multidão como uma entidade única.

E foi exatamente isso que vimos no dia 8, seja via TV, vídeos nas redes sociais ou até mesmo ao vivo, para quem esteve por lá. O que deveria ser uma manifestação pacifica, em uma fração de segundos tornou-se um aglomerado de atos irresponsáveis, depredatórios, contrariando tudo aquilo que a grande massa propunha, ou seja, uma manifestação pacifica como estava ocorrendo desde o fim das eleições. Novamente reforço que não interessa a este artigo a busca pela verdade, seja ela qual for, ou mesmo o enaltecimento de A ou B, mas é preciso pontuar os atos de vandalismo como contrários ao que a psicologia acredita, independentemente da situação. Caso contrário, abrimos espaço para as maiores atrocidades já ocorridas na história da humanidade.

Voltando à ciência da psicologia, desde os primórdios do estudo da psicologia das multidões, como já descrito, teóricos das mais diversas abordagens focaram no fenômeno das massas como algo negativo. Para tanto, apresentaram o quão perigoso foi para a humanidade o agrupamento de massa e a rápida disseminação de ideologias como nazismo, fascismo, ou mesmo, as recentes bolhas especulativas no campo da economia.

Grandes obras literárias exploram muito bem as teorias apresentadas neste ensaio, como, por exemplo, o livro do jornalista escocês Charles Mackay, Memorando de Extraordinários Engodos Populares e a Loucura das Multidões – 1841. Nele, Mackay procura apresentar o ridículo de fenômenos de massa e das influencias negativas que a política e a religião têm sobre a sociedade.

Ainda temos Gustavo Le Bon, com A Multidão Um Estudo da Mente Popular, onde são apontadas a impulsividade, incapacidade de raciocínio e ausência de senso critico, como sendo características das multidões. Ideia seguida pelo sociólogo Gabriel Tarde e depois pelo pai da psicanálise Sigmund Freud, ambos buscando apresentar como o comportamento negativo de um indivíduo se manifesta em grupos, ou seja, como grupos e multidões podem fazer com que o individuo tenha ações que jamais teria sozinho, ou mesmo em pequenos aglomerados de duas ou três pessoas.

Atualmente, como vimos no domingo, as redes sociais representam um dos fenômenos de massa mais estudados e, no meu entender, perigosos, já que, assim como nas mídias tradicionais, se tem a facilidade da manipulação, de textos, imagens etc. No caso das redes, há ainda a instantaneidade como maior preocupação.

A maior prova disso foi o enorme número de compartilhamento e postagens ainda durante os acontecimentos, culpando uma maioria frente a minoria causadora do tumulto, o que de acordo com as teorias aqui colocadas não faz muita diferença, já que com o aumento das ações sem reações contrárias (aqui me refiro a intervenção dos responsáveis pela segurança), provavelmente teríamos, em questão de horas, um maior engajamento, afinal Zimbarbo já nos alertava para o fato de que pessoas boas em más situações se tornam pessoas más, seja pela ação ou pela omissão.

Em recente estudo apresentado por pesquisadores da Universidade de Indiana, é apontando o fato da vulnerabilidade de pessoas conectadas às redes sociais. De acordo com o estudo, as pessoas ficam vulneráveis a manipulação direta por meio de mecanismos automatizados de difusão de falsas informações, os chamados robôs – creio que todos, em alguma medida passamos por isso durante a pandemia.

Entretanto, nem tudo é negativo na análise do comportamento das massas. Como abordado, foi apenas uma minoria que causou todo tumulto visto ao vivo por milhares de pessoas. Steve Reicher, especialista em comportamento humano, é um dos estudiosos que credita positividade às massas. De acordo com sua teoria, em uma multidão de maneira geral, as pessoas compartilham uma mesma identidade social, cujas normas podem se passivas ou conflituosas, exatamente como acompanhamos nos últimos dias. Assim, não necessariamente as multidões vão apresentar comportamentos emergentes de falta de controle ou mesmo violência. E aqui destaco a obra de James Sorowiecki, Sabedoria das Multidões, onde o autor destaca que o grupo pode ser mais “inteligente” do que o individuo mais “inteligente” do grupo.

Ainda me referindo às redes sociais, a polaridade atual de nossa nação, não poderia deixar de citar (GEWEHR e PALMEIRA, 2019). Afinal, as atrocidades cometidas nos tempos das duas grandes guerras, bem como nas guerras que as sucederam, da mesma forma que ataques recentes a supermercados exigindo doação de cestas básicas, estudantes furiosos, invadindo igrejas, vandalizando concessionárias e bens privados pelas capitais e invasão de terras pelo grupo denominado “sem terra” soam já como História que perdeu seu colorido, como imagens em preto e branco um tanto esvaziadas de afeto, se não ainda totalmente esvaziadas de sentido.

Porém, “ódio, fanatismo, aversão ao outro e ao diferente, brutalidade revolucionária, o fervor em ‘esmagar definitivamente todos os malvados mediante um banho de sangue’, tudo isso está ressurgindo” (AMÓS Oz, 2016/2017, pp. 20-21). Tudo resurge de forma instantânea nas redes sociais, com clamor por “sangue” daqueles que são contrários aos seus pensamentos e cujas mensagens atuais são publicadas, com textos como “Deus me livre dos cidadãos de bem”, ou ainda, “cadeia neles”, “terroristas”.

Frequentemente esquecemos o aspecto transgeracional das catástrofes infligidas aos povos, o quanto a miséria alimenta a miséria e se perpetua, gerando um intrincado sistema de pesos e contrapesos, que se expressa na sempre renovada instabilidade do mundo (Prado de Oliveira, 2018)

Autores e teorias à parte, o fato é que a sociedade tem adoecido muito com os acontecimentos. A falta de normas e leis defendendo a todos sem qualquer discriminação, como defende nossa constituição, é condição sine qua non para termos o melhor das multidões, frente ao pior que emerge diariamente nos mais diversos cenários.

Assim, é sempre bom relembrar a história antiga e recente, onde regimes aqui descritos emergiram disfarçadamente, trazendo dor e sofrimento a sociedade, ao passo que seus criadores, ou melhor, aqueles chamados de “libertadores”, ou ainda, “solucionadores”, “mito” ou “o cara” perderam o controle abrindo a caixa de pandora.

Creio que diante de tudo que falei, mesmo com a caixa de pandora aberta, de acordo com a própria mitologia, nos resta a esperança. Esperança, que do ponto de vista da ciência da psicologia, pode ser interpretada pela visão da teoria cognitiva comportamental, onde o foco é a mudança de pensamento, e não mudança de comportamento. De acordo com a teoria, a grosso modo, ao mudarmos o pensamento, automaticamente mudaremos nosso comportamento, mas mudando apenas o comportamento, nem sempre mudamos o pensamento.

Não poderia terminar este ensaio sem citar Jung e sua obra “aspectos do drama contemporâneo”, onde o autor afirma que todo indivíduo é, inconscientemente, pior em sociedade do que quando atua por si só. O motivo é que a sociedade o arrasta e na mesma medida o torna isento de responsabilidade individual. Um grupo numeroso de pessoas, ainda que composto de indivíduos admiráveis revela a inteligência e moralidade de um animal pesado, estúpido e predisposto à violência. Quanto maior a organização, mais duvidosa é sua moralidade e mais cega sua estupidez.

Para saber mais, vale a pena que o amigo leitor explore algumas teorias ligadas as massas, como a teoria do contágio, teoria da convergência, teoria da norma emergente, teoria da identidade social ou mesmo teoria dos sistemas adaptativos complexos.

Até a próxima semana.

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