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Torcida

Pelé enfrentou racismo em meio a mito da democracia racial brasileira

O Rei recebeu membros do movimento Marcha Contra o Racismo para discutir os atos em memória dos 300 anos da morte de Zumbi dos Palmares.

FolhaPress

31/12/2022 11h51

Foto: Reprodução Twitter

Luiz Paulo De Souza

Em 14 de novembro de 1995, quando Pelé já havia deixado de lado o título de jogador em atividade e passou a carregar o cargo de ministro extraordinário dos Esportes do governo de Fernando Henrique Cardoso, ele mostrou uma face pouco difundida. O Rei recebeu membros do movimento Marcha Contra o Racismo para discutir os atos em memória dos 300 anos da morte de Zumbi dos Palmares.

Pelé, um homem negro da equipe ministerial, poderia ser uma ponte entre os ativistas e o presidente.

Mas o ídolo foi além. Mais do que discutir a marcha, defendeu o voto em negros. “Se o negro quer que se tenha uma melhora na sua posição social e uma melhora no Brasil de uma maneira geral, temos de botar a gente no Congresso para defender a nossa raça”, disse o então chefe do Esporte.

Disse ainda que o sinônimo do político no Brasil, na época, era corrupção -“mas que o negro não carregava essa marca”.

Edson Arantes do Nascimento, Pelé, morreu nesta quinta-feira (29), aos 82 anos, sob questionamentos do seu letramento racial e político. Entretanto, o ídolo se posicionou contra o racismo durante carreira, principalmente em momentos em que ganhava potência o mito da democracia racial brasileira. Mesmo com falas controvérsias, ele é visto por especialistas como um homem negro em que a atuação profissional carregava representatividade social e política para seu grupo.

Quando se posicionava, porém, ganhava desafetos. Sua fala em favor do voto em negros e sobre a corrupção no meio político causou desconforto entre membros do Congresso. “Não acredito que ele tenha dito isso, mas, se disse, vou fazer uma guerra”, pontuou o então presidente da Câmara, Luis Eduardo Magalhães (PFL-BA), na sequência -em nota, na época, Pelé depois relativizou sua fala sobre corrupção.

Por outro lado, o discurso sobre voto foi acolhido por representantes do movimento negro. “É muito importante uma representação institucional dos negros para mudar a situação”, disse o jornalista e doutor em educação Edson Lopes Cardoso, secretário-geral do movimento.

Outro objetivo do encontro era conseguir visibilidade e espaço na mídia. Em entrevista à reportagem, Cardoso lembra que eles foram surpreendidos pela recepção de Pelé, que não só ouviu atentamente aos membros da Marcha como estimulou a presença do negro da política.

Para Cardoso, que é militante do movimento negro e autor do livro “Nada os Trará de Volta”, é ingenuidade acreditar que um homem negro retinto nascido na década de 1940 não tivesse consciência racial. Para ele, a mera presença do jogador na seleção e a excelência com que atuava já foram, em si, atos políticos grandes o suficiente para mudar o imaginário coletivo sobre o que é ser negro.

Os posicionamentos políticos do jogador foram além da questão racial. Em 1969, ao fazer seu milésimo gol, pediu que “nunca se esqueçam das crianças pobres, dos necessitados e das casas de caridade”.

Em 1984, Pelé também apoiou o movimento Diretas Já, em protesto pela retomada das eleições diretas para presidente. Em 1994, quando disse que poderia se candidatar à presidência, se declarou socialista.

Por outro lado, o ídolo foi criticado quando afirmou que o jogador Aranha, do Santos, se precipitou ao contestar torcedores do Grêmio que o xingaram de macaco durante a partida pela Copa do Brasil em 2014. Pelé disse que o racismo deve ser coibido,

“mas não é em um lugar público que vai coibir”.

“Aranha se precipitou um pouco em querer brigar com a torcida. Se eu fosse parar o jogo cada vez que me chamassem de macaco ou crioulo, todo jogo teria que parar”, disse, na época, ao comentar o episódio.

Pelé atuou no período em que crescia com mais robustez o mito da democracia racial brasileira, ideologia que, ainda hoje, desacredita a desigualdade étnica no Brasil.

Para o historiador e criador do podcast História Preta, Thiago André, o ídolo nunca deixou de se posicionar contra esta teoria. Em 1988, o jogador participou da campanha pelo centenário da abolição da escravidão. Nos comerciais veiculados pelo governo, ele destacava o papel da população negra na construção do país, não apenas de maneira braçal, mas também na cultura e no esporte.

“Isso parece ser muito corriqueiro no dia de hoje, mas naquele momento da história era absolutamente surreal que o maior ídolo mundial e o maior brasileiro de todos os tempos estivesse entrando diariamente na televisão e dando essa mensagem”, diz.

Além disso, o historiador pontua que a ideia da falta de letramento político de Pelé surgiu após o jogador não se posicionar de maneira contundente contra a ditadura militar imposta entre os anos de 1964 e 1985.

André pontua, entretanto, que a seleção sofria grande pressão do governo na época para que a excelência do Brasil no futebol funcionasse como um símbolo de unidade nacional. A saída de Pelé do time no auge da ditadura também é vista como um protesto do jogador contra o regime, que foi enfrentado com represálias e perseguição do governo e da extinta CBD (Confederação Brasileira de Desportos).

Para ele, a propagação da ideia de que Pelé era omisso racial e politicamente serve apenas para a manutenção do racismo. “Esse estigma permanece porque é um estigma de raça. O estigma de raça mais resistente no Brasil é a de que o preto não presta e não tem inteligência emocional. É esse estigma que o Pelé enfrentou.”

Pelé começou a jogar profissionalmente aos 17 anos e, aos 22, já tinha 500 gols. Aos 29 fez o milésimo. Participou de um Mundial pela primeira vez em 1958, e pela última em 1970.

“A figura que fica para mim é a de excelência. Pelé foi um Rei apesar do Brasil”, finaliza o historiador.

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