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Saúde

Responsabilidade social em tempos de coronavírus: quando o eu que faço não afeta só a mim

O ser humano, ao mesmo tempo que nos dá esperança, nos entristece com atitudes egoístas, como várias outras que marcaram a história da humanidade.

Redação Jornal de Brasília

23/03/2020 9h40

Responsabilidade social

Carlos Augusto de Medeiros*

O momento ímpar na história deste século tem nos imposto contingências impensadas há meses atrás, como restrições das mais diversas, como ir ao trabalho, ir para faculdade ou escola, ir ao cinema ou a um restaurante, bater uma pelada, treinar na academia entre outras. Em suma, nosso sagrado direito de ir e vir foi temporariamente revogado. Além disso, agora existe o medo de uma doença que, para muitos de nós e muitos dos nossos entes queridos, pode ser fatal. Novos hábitos de higiene devem ser adotados, requerendo recursos que rapidamente se esgotaram, como álcool em gel e máscaras respiratórias. Fora o fato de que não há vagas em hospitais para todos que precisarão de atendimento médico, o que levará ao colapso os serviços de saúde. Os impactos econômicos serão gigantescos para os menos favorecidos, camelôs, feirantes, comerciantes, profissionais liberais, autônomos entre outras categorias. O medo de passar severas privações financeiras é tão real e pode ser até mais assustador que o COVID-19 para algumas dessas pessoas. Por fim, ao contrário das outras pestes que a humanidade já experimentou, essa é acompanhada, em tempo real, com acesso ilimitado à informação que nem sempre é confiável.

O que chama a atenção nos elementos descritos acima é que todos afetam de forma dúbia os indivíduos. Na realidade, nos deparamos com dois pares de dicotomias que levam nossos comportamentos a direções e sentidos opostos. A primeira dela diz respeito às consequências de nossas ações para nós mesmos em curto e em longo prazo. O vírus não é como um walking dead que nos persegue para se alimentar de nossa carne e, ao nos morder, já sabemos da contaminação. Mesmo em contato com alguém contaminado, só teremos evidências de contaminação dias depois, e ainda, com sintomas comuns a outros problemas respiratórios. Para piorar, pessoas sem sintomas podem transmitir. Não saberemos, de antemão, quais comportamentos resultarão em contágio de modo específico. Sabemos apenas que interações com pessoas favorece o contágio, mas não sabemos quais são essas pessoas. Sendo assim, devemos interagir apenas com pessoas que sabemos não estar contaminadas ou que não foram expostas a qualquer interação que possa tê-las contaminada. Logo, não podemos interagir com praticamente ninguém.

Além disso, nosso isolamento é apenas uma medida preventiva. É muito improvável que alguém, ao sair para dar uma corridinha na rua, interaja com uma pessoa contaminada hoje. Afinal, praticamente não há pessoas na rua. Agora imagine se todos tiverem a mesma ideia. O mesmo aconteceria se bares, shoppings e restaurantes não estivessem fechados. Sendo assim, agir preventivamente não produzirá efeitos observáveis agora, porém, evitará consequências muito graves no futuro. Porém, é muito difícil ter autocontrole quando as consequências de nossas escolhas impulsivas demoram a acontecer e quando podem não acontecer. Ser autocontrolado agora é não sair de casa, que consiste em não visitar amigos, não visitar parentes, não se exercitar ao ar livre, não comer quitutes numa padaria, não por a mão no rosto, não tocar os outros, lavar a mão várias vezes ao dia etc.

Para você que domina os dispositivos eletrônicos como smartphones, smart tvs e computadores, essas imposições já parecem infernais. Imagine para os idosos que não dominam essa tecnologia. Aqueles que tinham como entretenimento bater papo com os zeladores do prédio, brincar com netos, jogar dominó na praça, ira à lotérica fazer uma fezinha ou ao banco pagar uma conta. Os idosos, principalmente eles, serão os mais afetados pelo coronavírus, não apenas pela morbidade ou letalidade e sim, pelo o isolamento social que, para eles, será mais severo. Se você quer cuidar de seus idosos, encomende livros e palavras cruzadas para serem entregues em casa, instruam-nos com paciência a usarem o whatsapp e o Netflix, ou qualquer outro serviço de streaming, telefonem para eles com frequência etc. O tédio tem o maior potencial de fazê-los agir de maneira imprudente.

A segunda dicotomia que essa condição impõe é entre as consequências dos meus atos para mim e para os outros. Sair de casa apenas quando estritamente necessário não apenar protege a você, mas protege toda a sociedade. Nossa população, por mais que tenha envelhecido, ainda é jovem. O que significa que as consequências da contaminação podem ser brandas, certamente mais brandas que uma facada. Porém, a contaminação de um jovem afetará mais à sociedade, principalmente os mais vulneráveis, do que a ele mesmo. Em outras palavras, ser negligente com o próprio contágio, na realidade, é ser mais negligente com os outros do que com si próprio. Você, jovem de classe média pode pagar um táxi ou uber para te levar ao hospital se os sintomas se agravarem, pode comprar remédios na farmácia, tem um quarto quentinho para se manter confortável, pode ter um colchão financeiro para se sustentar enquanto convalesce. Agora imagine um ambulante ou um morador de rua que, ou não tem acesso a isso, ou tem que trabalhar para ter o que comer. Ao ficar em casa, você não está cuidando só de si, mas de todos os demais que tem menos condições de vencer essa batalha que você.

O mesmo raciocínio vale para o estocar alimentos, comprar máscaras, álcool em gel em excesso ou a droga chamada hidroxicloroquina, que teve resultados promissores com 20 pacientes. Esses recursos são esgotáveis. Não são suficientes para todos. Se você corre aos supermercados e farmácias para comprar esses itens desnecessariamente ou em quantidade desnecessária, está prejudicando todos os demais. Novamente nos deparamos para as consequências das ações para o indivíduo e para o grupo. Ainda que esses itens de produzam uma sensação, muitas vezes falsa, de segurança, prejudica a todos para os quais esses itens são realmente necessários. Ao mesmo tempo que temos visto atos solidários, generosos, com responsabilidade social, como dispensar diaristas e continuar pagando as diárias; se dispor a ir ao mercado por quem não pode ir; doar itens de higiene para quem não tem acesso; comprar de microempresas ou de ambulantes, ao invés de grandes marcas; também temos visto diversas atitudes egoístas, como ser negligente ao sair de casa ou com a higiene; estocar alimentos e álcool gel; falsificar álcool em gel; comprar grandes quantidades de álcool em gel para revender mais caro; comprar máscaras estando saudável etc.

O ser humano, ao mesmo tempo que nos dá esperança, nos entristece com atitudes egoístas, como várias outras que marcaram a história da humanidade. A diminuição dos efeitos da poluição com a redução da atividade humana no mundo, mostra os efeitos de nossas ações sobre o planeta e, no fim das contas, em nós mesmos. O coronavírus demonstra em escala reduzida e acelerada como nossos atos repercutem em nós e nos outros. Mas quando nossos atos repercutem nos outros, acabam nos afetando ou afetando nossos descendentes. Se você for negligente e egoísta, contribuirá para a propagação do vírus e, mesmo que se sinta protegido com máscaras, litros de álcool em gel, saiba que o volume de pessoas contaminadas é muito mais relevante para a sua contaminação. Ou seja, pensar no outro também é pensar em você em longo prazo.

Lembre-se, você não é responsável só por você!

* Carlos Augusto de Medeiros é doutor em psicologia e professor do UniCEUB. Tem experiência na área de Psicologia, com ênfase em Análise do Comportamento aplicada à clínica e em Análise Experimental do Comportamento, trabalhando principalmente com os seguintes temas: comportamento verbal, psicoterapia analítica-comportamental (Psicoterapia Comportamental Pragmática), comportamento governado por regras e controle social do comportamento.

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