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Saúde

O resgate da filantropia será um dos legados da pandemia

Foram cerca de 30 anos percorridos até a comunidade iniciar o tratamento de doenças torácicas, como a tuberculose

Redação Jornal de Brasília

20/10/2021 17h49

Foto: Agência Brasil

Cleusa Ramos

Era o ano de 1918, período marcado por outra emblemática pandemia – da gripe espanhola – quando um grupo de senhoras da comunidade árabe decidiu fundar a Associação Beneficente Síria. Sua principal ação: amparar os órfãos da Primeira Guerra Mundial.

Foram cerca de 30 anos percorridos até a comunidade iniciar o tratamento de doenças torácicas, como a tuberculose. E quase 60 anos até a inauguração do Hcor (antigo Hospital do Coração em São Paulo), que, na época, nascia com o objetivo de cuidar exclusivamente da saúde cardiológica da população.

Por meio de ações de filantropia, o fortalecimento da saúde do Brasil foi tomando corpo. Seguindo com sua veia filantrópica, em 2009, o Hcor se uniu ao Ministério da Saúde para promover ações de consolidação da saúde pública, por meio do Programa de Apoio ao Desenvolvimento Institucional do Sistema Único de Saúde (PROADI-SUS). De lá para cá, foram mais de R$450 milhões investidos em iniciativas do tripé que sustenta a medicina de alto nível: assistência, pesquisa e ensino.

Em março de 2020, uma nova pandemia passou a exigir adaptações diárias de toda população. A desigualdade, escancarada, assombrou profissionais e gestores de saúde com a mínima possibilidade de faltar leitos de UTI para os doentes. Nos bastidores, faltava também valorização profissional, conhecimento técnico e até itens mais básicos como máscaras e luvas.

Presenciamos inúmeras iniciativas solidárias tomando forma e uma imensa movimentação da sociedade, organizações, empresas e chefes de estado caminhando em uma mesma direção, a de combate ao inimigo desconhecido. Parcerias por vezes inimagináveis entoando a voz da ciência e do senso coletivo de preservação, desviando dos discursos vazios e repletos de ódio endossados pela polarização que, infelizmente, também perturba o Brasil.

O ranking do World Giving Index, com o último Índice Global de Solidariedade, revela que a pandemia produziu uma onda global de ações filantrópicas. Os dados de 2020 mostram que o Brasil subiu 14 posições (ficando em 54º lugar em uma lista de 114 nações). A avaliação é baseada em critérios como ajuda a estranhos, doação de dinheiro e tempo dedicado ao voluntariado.

Quando falamos em empresas, no mundo, mais de 90% das instituições filantrópicas são fundações independentes ou familiares. Já no Brasil, esse índice cai para 64%. Com base nessa realidade, um ano e meio depois, após percorrermos uma jornada de altos e baixos, me questiono se o pilar filantrópico permanecerá em pé por aqui.

Há quem diga que essa (falta de) cultura de filantropia do brasileiro seja resultado da alta participação do Estado nas áreas de saúde, cultura e educação. Como gestora hospitalar com algumas décadas de atuação na área da saúde e, atualmente, recém-chegada à superintendência de Educação e Responsabilidade Social do Hcor, hospital que nasceu com essa veia filantrópica, ouso dizer que esse é o resultado da grande falta de entendimento em relação ao setor e suas iniciativas.

No ano passado, o setor filantrópico empregava mais de 2,3 milhões de colaboradores diretos. Só na saúde, as atividades correspondiam a 59% de todas as internações de alta complexidade do Sistema Único de Saúde (SUS). Somando-se, ao todo, 260 milhões de procedimentos ambulatoriais e hospitalares por ano.

Reforçando esses números com exemplos práticos, me orgulho em dizer que o hospital conquistou mudanças significativas com projetos filantrópicos de atendimento a pacientes e capacitações de profissionais. Na área assistencial, gestantes foram contempladas pelo programa de cirurgias intrauterinas. Com procedimentos de alta complexidade que propõem uma intervenção cirúrgica no bebê, ainda na barriga da mãe, os cirurgiões do Hcor repararam malformações e alterações do bem estar fetal em tratamentos que chegariam a custar até R$ 1 milhão por criança.

E outras mais de 20 mil famílias já foram atendidas pela nossa área de Cardiopatias Congênitas. Nela, não só realizamos as cirurgias nos pequenos coraçõezinhos de bebês também antes do parto como capacitamos profissionais no país inteiro, para que nosso conhecimento especializado seja democratizado no maior número de centros de saúde do Brasil.

Por falar em conhecimento democratizado, há de se lembrar de todas as ações colocadas em prática desde o início da pandemia de Covid-19. Uma intensa dedicação de tempo e atenção do time do Hcor, que foi decisiva, em muitos lugares, para salvar vidas. Todos os dias da semana, nossos intensivistas estiveram à disposição para o projeto de Tele UTI do SUS, esclarecendo dúvidas e realizando mais de 5 mil visitas especializadas à distância aos pacientes críticos internados em instituições públicas de diferentes regiões brasileiras. Ainda compartilhamos conhecimento técnico em gestão sobre Covid-19 com profissionais de outros 600 centros médicos, distribuídos em 239 municípios, em quase 6 mil conexões.

Decidindo ir além da telemedicina, a instituição efetivamente levou sua equipe a 16 estados. Com atuação presencial e informações desenhadas sob demanda e adaptadas à realidade local, qualificou mais de 10 mil profissionais de saúde. Foram dias de treinamentos sobre o uso de ventiladores mecânicos e suporte ventilatório, transporte e manejo seguro dos pacientes com suspeita e confirmação do novo coronavírus, que certamente salvaram vidas.

Agora, com o avanço da vacinação e as rotinas sendo retomadas, olhamos para o futuro com o desafio de estabelecermos novas captações e parcerias, a fim de darmos andamento em antigos e novos projetos sociais encabeçados pelo hospital, seguindo com nosso propósito institucional de cuidar das pessoas e fortalecer a saúde.

A filantropia vai muito além do assistencialismo ou da caridade. Ela realiza mudanças estratégicas e efetivas. Da gripe espanhola à Covid-19, as ações filantrópicas tiveram papel importante na promoção de saúde e continuarão a ter, independentemente das novas doenças que virão a acometer a população. A medicina – e aqui amplio para o sistema de saúde – é, acima de tudo, humana. Juntos podemos cobrar e agir para que nenhum brasileiro perca a vida, deixe seus sonhos e familiares por falta de leito, equipamentos ou empatia.

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