Renata Galf e José Marques
São Paulo, SP
A apreensão, na casa do ex-ministro da Justiça Anderson Torres, de uma minuta (proposta) de decreto para o então presidente Jair Bolsonaro (PL) instaurar estado de defesa na sede do TSE (Tribunal Superior Eleitoral) abre novas rotas de investigação sobre os ataques aos Três Poderes em 8 de janeiro.
Segundo especialistas, a informação revelada pelo jornal Folha de S.Paulo representa um indício jurídico que pode pesar contra Torres e Bolsonaro, mas cujas reais implicações e efeitos para ambos dependerão dos próximos passos e de outros elementos de prova.
O principal aspecto do documento, a princípio, é o indício de que haveria efetivamente um debate sobre caminhos para dar um golpe.
Integrantes da cúpula do Ministério Público Federal veem caminhos também para que o ex-presidente seja incluído em uma investigação sob suspeita de integrar uma organização criminosa contrária ao Estado democrático de Direito.
Pensam, ainda, que o documento abre caminho para que se iniciem tratativas para um eventual acordo de delação premiada de Torres.
A PGR (Procuradoria-Geral da República) já pediu ao STF (Supremo Tribunal Federal) para apurar as condutas de Anderson Torres, que tem ordem de prisão preventiva decretada pelo ministro Alexandre de Moraes do STF e respaldada pelo plenário da corte.
Cerca de 80 procuradores do Ministério Público Federal também pediram ao procurador-geral da República, Augusto Aras, investigação Bolsonaro por suspeita do crime de incitação. Alguns procuradores entendem que a minuta pode servir como um elemento de prova contra o ex-presidente numa eventual apuração.
Para a maior parte dos especialistas, porém, o fato isolado de o documento ter sido feito não constitui crime por parte de quem o fez, mas, a depender do que mais for descoberto em relação a ele, pode vir a representar uma prova de envolvimento -ou ao menos omissão deliberada, no caso de Torres- nos atos criminosos de 8 de janeiro.
Em um tuíte em suas redes sociais, Torres não negou a existência do documento e deu a entender que a minuta teria sido entregue a ele por um terceiro, além disso criticou sua divulgação, afirmando que ele foi “vazado fora de contexto”.
“No cargo de ministro da Justiça, nos deparamos com audiências, sugestões e propostas dos mais diversos tipos. Cabe a quem ocupa tal posição, o discernimento de entender o que efetivamente contribui para o Brasil”, escreveu.
O material apreendido pela PF tem indicação de ter sido feito após a realização das eleições e teria objetivo de apurar abuso de poder, suspeição e medidas ilegais adotadas pela presidência do TSE antes, durante e depois do processo.
De acordo com fontes ouvidas pela Folha de S.Paulo, o documento cita o restabelecimento imediato da lisura e correção da eleição de 2022. O esboço de decreto tem três páginas, em papel, e foi feito em computador.
Para a criminalista Ana Carolina Moreira Santos, em tese, a minuta pode representar mais uma prova de que a conduta de Torres em relação aos atos de domingo teria sido intencional e que, com isso, ele poderia responder por crime contra o Estado democrático de Direito que tenha sido cometido na data, numa modalidade do direito que se refere à omissão de alguém que tem um dever de agir.
A professora de direito penal da USP Helena Lobo diz não ver, neste momento, que, do ponto de vista criminal, a minuta possa ser um elemento contra o ex-presidente, o que dependeria de outras provas que mostrassem sua ligação com o documento. “Isso é a ponta de um iceberg que agora vai ter que ser começado a sem investigado pela polícia e pela PGR”, afirma
No caso de Torres, por outro lado, ela considera que a minuta é um indício que reforça inclusive o embasamento para o decreto de prisão expedido pelo STF.
O coordenador da Abradep (Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político) Renato Ribeiro, diz que a minuta pode corroborar “com o contexto de que o ex-presidente incitou atos que contestaram o resultado das urnas e incentivaram as situações que ocorreram no dia 8 de janeiro”.
“Dependendo do desenrolar das investigações, se ficar comprovado que o ex-presidente incitou esses atos ou foi um financiador desse tipo de atos, pode levá-lo a uma condenação ou a um pedido de prisão”, afirma.
Segundo a professora de direito penal Raquel Scalcon, a minuta em si não constitui um crime. Ela considera que a discussão principal estará no no seu valor da minuta enquanto elemento probatório de possível envolvimento na organização de atos antidemocráticos, e que, no caso de Bolsonaro, as consequências do documento são mais incertas do que em relação a Torres.
“A minuta é um importante ‘problema a mais’ para Bolsonaro, piora juridicamente a situação, porque é um indício que não pode ser ignorado”, avalia ela com base no que se tem conhecimento sobre seu conteúdo.
“Mas que pode ser fortalecido ou arrefecido com os próximos capítulos”.
Ela destaca, porém, que ter o documento em formato físico dificulta a obtenção de mais elementos a partir do próprio arquivo, como dados de autoria e data.