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Política & Poder

Governo Lula precisa buscar justiça climática dentro do Brasil, diz socióloga

“Quero dizer que o Brasil está de volta. Está de volta para reatar os laços com o mundo”, discursou o petista no evento

FolhaPress

21/02/2023 7h28

Foto: Reprodução/Agência Brasil

Cristiane Fontes

O papel central que a agenda do clima terá na diplomacia do governo Lula (PT) ficou evidente desde a participação do presidente na COP27 (conferência da ONU sobre mudanças climáticas, em novembro de 2022, no Egito), logo após a eleição.

“Quero dizer que o Brasil está de volta. Está de volta para reatar os laços com o mundo”, discursou o petista no evento, em que sugeriu uma cúpula de países da Amazônia e também se dispôs às Nações Unidas a ser anfitrião da COP30, em 2025.

Para Adriana Abdenur, diretora-executiva da Plataforma Cipó, instituto de pesquisa dedicado a questões de clima, governança e paz, sediar esses encontros é parte importante da reconstrução da agenda de política externa que o novo governo precisa fazer.

Ainda durante o pleito, a Plataforma Cipó coordenou a elaboração do documento “Clima e Estratégia Internacional: Novos Rumos para o Brasil”. O trabalho é resultado de consultas com 70 atores de diversos setores da sociedade, incluindo grupos que tradicionalmente não têm muita voz nas discussões de política externa, como mulheres, negros, indígenas, LGBTQIA+ e instituições fora do eixo Brasília-Rio de Janeiro-São Paulo. O material foi entregue a Lula na COP27.

Abdenur, que integrou o grupo de trabalho de política externa da equipe de transição do governo, destaca, entre outros pontos, a urgência de o Brasil ratificar o Acordo de Escazú, que trata da proteção de defensores ambientais. O país assinou o texto em 2018, mas nunca fez a ratificação.

Outro tema que se impõe, diz a especialista, é formular políticas públicas que busquem a justiça climática -expressão que destaca que os impactos das mudanças no clima atingem de forma desproporcional certos grupos sociais, o que perpetua, entre outros problemas, o chamado racismo climático. Ambos os conceitos, muito em voga nas discussões internacionais, precisam ser aplicados também dentro do país, afirma.

Na presidência do G20, grupo das maiores economias do mundo, que será assumida pelo Brasil em dezembro de 2023, Abdenur vê ainda a chance de o país liderar discussões sobre desenvolvimento sustentável e segurança alimentar –tópico que ganhou relevância com a Guerra da Ucrânia.

“O Brasil, que tem um papel propositivo historicamente nessa área, pode levar para o G20 não apenas as questões referentes à crise financeira e de endividamento dos países mais vulneráveis, mas também essas pautas substantivas”, avalia Abdenur, que aponta também a necessidade de ampliação da participação da sociedade civil nesses debates. Na primeira semana do novo governo, o Itamaraty anunciou a criação da Assessoria de Participação Social e Diversidade, diretamente subordinada ao ministro Mauro Vieira.

.PERGUNTA – Como incluir o conceito de justiça climática no centro da estratégia internacional do Brasil, como defendido no documento da plataforma Cipó?

ADRIANA ABDENUR – O conceito de justiça climática é muito relevante tanto no plano doméstico quanto no internacional. É relevante que a gente avance no plano doméstico. A gente sabe que quem se beneficia mais dos recursos associados ao desenvolvimento, à ação climática e a outras áreas das políticas públicas são as elites, ao passo que os grupos que são mais expostos às mudanças climáticas e à destruição e degradação do meio ambiente são os grupos mais vulneráveis.

A pesquisa científica já identifica que as mulheres, os negros, as populações indígenas, os quilombolas, as populações LGBTI+, as pessoas portadoras de deficiências estão menos preparadas para lidar, por exemplo, com os eventos extremos climáticos e também têm muito menos acesso aos recursos que estão disponíveis, e que são muito escassos, para lidar com esses eventos.

É chegado o momento de lideranças no Brasil adotarem explicitamente o conceito de justiça climática, e também recortes que são relevantes, como o racismo climático. É um conceito que precisa ser incorporado não apenas no diagnóstico, mas na formulação de soluções.

P.- Qual foi a proposta do GT de política externa no governo de transição para fortalecer os direitos indígenas como parte da agenda climática?

AA- É muito relevante que o Brasil priorize a ratificação do acordo regional sobre acesso à informação, participação pública e acesso à justiça em assuntos ambientais na América Latina e no Caribe, conhecido como Acordo de Escazú.

É um acordo que prevê não apenas maior transparência, mas também demanda que os países signatários invistam na defesa e na proteção dos defensores ambientais. A gente sabe que as comunidades indígenas estão sendo atacadas, sendo alvos de assassinatos e de outras formas de violência.

Outro tema muito relevante é o tema da consulta prévia. Quando a gente tem projetos de infraestrutura, sobretudo de grande porte, como rodovias, ferrovias e hidrelétricas, eles precisam ocorrer com consulta prévia. Isso está acordado em normas, por exemplo, da Organização Internacional do Trabalho.

P.- A China é o principal mercado internacional de commodities brasileiras, como minério de ferro, carne e soja. Quais são as oportunidades e os desafios para assegurar uma agenda de compromissos sobre clima e meio ambiente do país asiático com o Brasil?

AA- Além da compra de commodities, há também os investimentos diretos que atores chineses fazem, por exemplo, em infraestrutura de transporte, de logística.

É preciso que o Brasil se engaje bilateralmente com a China para poder combater os crimes ambientais -e a demanda chinesa pelos produtos que estão pressionando a floresta é muito alta. É impossível que a gente tenha um avanço pleno nessa área sem ter uma conversa mais profunda com a China, não apenas com empresas, mas com o próprio governo.

Os Estados Unidos, maior rival geopolítico da China, já conseguiram alcançar uma declaração conjunta de compromissos sobre clima e meio ambiente. Isso pode servir como base de inspiração para o Brasil.

P.- E como fomentar a agenda de soberania alimentar, considerando que a maior parte dos esforços do Itamaraty nos últimos anos foi dedicado a ampliar o mercado de commodities agrícolas no exterior?

AA- O desafio vai ser encontrar intersecções que passam pela agenda da agricultura de baixo carbono e pela cooperação em áreas em que o Brasil já detém bastante conhecimento. A Embrapa, entre outros atores, tem pesquisa para uma agricultura mais sustentável.

O desafio desse novo governo vai ser equilibrar os interesses de forma a manter um papel que seja interessante para o nosso crescimento e para a redistribuição da riqueza no Brasil e, para isso, o agro é absolutamente essencial, ele compõe uma parte significativa do nosso PIB. Mostrar inclusive para os atores do agro que a sustentabilidade passa a ser o valor agregado para uma nova competitividade lá fora.

A demanda por produtos agrícolas livres de desmatamento, de outros crimes ambientais e de violações aos direitos humanos cresceu muito, não apenas nos Estados Unidos, no Canadá, na Europa, mas também em outros países.

É muito importante também que o Brasil aproveite espaços regionais, como a Unasul [União de Nações Sul-Americanas], o Mercosul e a Organização do Tratado de Cooperação da Amazônia, para fortalecer a agenda de segurança e soberania alimentar, de forma que os países da região possam se apoiar em um projeto de longo prazo e, ao mesmo tempo, que nós possamos ter, sim, uma agricultura voltada à exportação forte e justa.

P.- As negociações de meio ambiente e clima estão cada vez mais complexas e, por outro lado, a capacidade técnica da atuação das delegações brasileiras nas negociações climáticas ficou comprometida nos últimos anos. Como resgatar a credibilidade técnica da delegação brasileira?

AA- A credibilidade do Itamaraty na área é muito forte, porque detém todo o histórico, uma memória institucional que precisa ser resgatada através dos seus quadros de diplomatas e também da rede de chancelaria.

O que é necessário agora é que o Itamaraty seja arejado, porque, pela defasagem da capacidade de engajamento para além da negociação de metas, hoje em dia é a sociedade civil no Brasil que puxa a agenda climática e ambiental.

A reconstrução do Ministério do Meio Ambiente e a construção do zero do Ministério dos Povos Indígenas partiram da sociedade civil. E um tema que é muito caro à sociedade civil é a ampliação da sua participação, através da reconstrução dos conselhos, mas também da criação de novos mecanismos.

P.- Na sua opinião, quais deveriam ser os avanços na agenda climática e ambiental almejados pelo país à frente da presidência do G20 [a partir de dezembro] e no Brics [bloco de economias emergentes que também conta com Rússia, Índia, China e África do Sul]?

AA- O Brasil pode pensar numa agenda propositiva não apenas de forma a beneficiar a população brasileira, mas também propor reformas da governança global. O presidente Lula é um dos pouquíssimos chefes de estado que têm a legitimidade e a capacidade de mobilizar outros países em desenvolvimento.

No G20, seria muito interessante que o Brasil levantasse a bandeira climática, mas com uma pegada dos países em desenvolvimento, ou seja, equilibrando mitigação, adaptação, perdas e danos e financiamento, mas, sobretudo, puxando a sardinha para o lado de desenvolvimento sustentável, inclusive da soberania e da segurança alimentar.

A gente vê que com a guerra na Ucrânia a segurança alimentar de muitos países foi afetada. Tem países africanos que dependiam quase que 100% da importação de trigo da Ucrânia e tiveram que recorrer a outros laços improvisados de cooperação. O Brasil, que tem um papel propositivo historicamente nessa área, pode levar para o G20 não apenas as questões referentes à crise financeira e de endividamento dos países mais vulneráveis, mas também essas pautas substantivas.

P.- Qual é a importância dos eventos propostos por Lula para o Brasil na área do clima, como uma cúpula sobre a Amazônia no próximo ano e a COP30, conferência climática da ONU, em 2025?

AA- É muito importante que o Brasil volte a sediar eventos internacionais. Quem sedia um evento internacional ajuda a pautar. Existe uma cobrança muito grande para que o presidente Lula não apenas combata o desmatamento e outros crimes ambientais na Amazônia e no cerrado, mas que também assuma uma agenda propositiva.

E não há melhor forma de fazer isso do que chamar uma cúpula inédita na Amazônia onde se possa construir uma agenda propositiva não apenas para a política externa brasileira, mas também para a região.

Nós temos agora um momento muito interessante, de alinhamento relativo na maioria dos países da região. É uma oportunidade única no que diz respeito às relações entre o Brasil e a Colômbia, e também com o Chile, onde temos agora um governo progressista muito empenhado nessas pautas climáticas e ambientais.

Então dessa cúpula podem sair novas ideias. Uma nova oportunidade para o Brasil será a pauta da biodiversidade. O Brasil é o país mais biodiverso do mundo, e a Convenção da Diversidade Biológica recebe muito menos atenção política e recursos do que a convenção climática.

RAIO-X
Adriana Abdenur, 47
Doutoranda em sociologia do desenvolvimento pela Universidade Princeton (EUA), é cofundadora e diretora-executiva da Plataforma Cipó, instituto de pesquisa independente, com sede no Rio de Janeiro, liderado por mulheres e dedicado a questões de clima, governança e paz na América Latina e no Sul Global. Integra o Comitê de Políticas de Desenvolvimento das Nações Unidas e participou do grupo de trabalho de política externa do governo de transição do presidente Lula.

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