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Política & Poder

Esquerda ainda pena com evangélicos, e identitarismo é visto como barreira

Passado o sufoco eleitoral, a esquerda tateia diante do azedume que se instalou contra ela entre boa parte dos evangélicos

Redação Jornal de Brasília

01/10/2023 8h22

Foto: Evaristo Sá/ AFP

ANNA VIRGINIA BALLOUSSIER
SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS)

Na noite do primeiro turno de 2022, quando já estava claro que Lula (PT) não tinha ido tão bem quanto esperado, com vantagem de apenas 5 pontos percentuais sobre Jair Bolsonaro (PL), Walter Pinheiro foi à internet dar “um recado para toda a esquerda brasileira”.

“Vocês vão chamar nós, os líderes evangélicos, para conversar de verdade ou vão continuar usando só a figura do Henrique Vieira como um totem?”, postou o pastor da progressista Igreja Betesda. “Vocês não vão vencer o bolsonarismo sem nós.”

Recado dado, mas, para especialistas de dentro e de fora dos templos, ainda tem chão até o campo assimilar plenamente a advertência para reconstruir pontes com o segmento, dinamitadas após dois movimentos xifópagos —a ascensão da luta identitária entre progressistas e de um conservadorismo mais estridente em templos já apegados ao que chamam de valores tradicionais da família.

O pleito acabou assim: Lula suou para vencer, com 2 milhões de votos a mais do que o rival, ninharia ante os 124 milhões de eleitores do segundo turno. Já Vieira, pastor que empolgou Gregorio Duvivier e outras personalidades alheias à fé evangélica, acabou eleito deputado federal pelo PSOL-RJ.

Passado o sufoco eleitoral, é em clima de cabra-cega que a esquerda tateia diante do azedume que se instalou contra ela entre boa parte dos evangélicos, outrora mais simpática a seus candidatos.

A dificuldade crônica em lidar com parcelas historicamente refratárias à retórica progressista persiste em outras redondezas, como segurança pública e agronegócio.

Não ajuda a dissipar essa desconfiança atitudes como Lula levar João Pedro Stedile, líder do MST, a um encontro com o presidente chinês, para ranço de ruralistas, ou dizer que havia “alguns fascistas” na Agrishow, maior feira de agro no país.

Também já insinuou que policial não é gente, gafe da campanha pela qual se desculpou depois. E seu governo pouco avança para “construir uma pauta positiva na área de segurança, que seja uma visão, digamos assim, alternativa ao bolsonarismo”, diz Rafael Alcadipani, da FGV e do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. “Parece que a esquerda não quer lidar com o problema.” O outro lado, por sinal, é excelente em capitalizar o medo generalizado da violência.

A incompatibilidade de gênios ideológicos nunca facilitou uma união estável entre esquerda e esses polos. Mas a polarização piorou muito, segundo Alexandre Gonçalves. Líder dos cristãos trabalhistas no PDT, ele circula por esses meios todos. É pastor, policial rodoviário federal e de Santa Catarina, enclave bolsonarista. Embora reconheça que a animosidade entre as partes já cultiva rugas, aponta que a belicosidade hoje é nuclear.

Usa 1989 de exemplo: muitos pastores endossaram Fernando Collor, alguns poucos, Lula —Silas Malafaia, aliás, votou nele no segundo turno. “Mas todos conviviam tranquilos. A partir de 2010, começou a ficar inconciliável dois pastores de uma mesma igreja apoiarem um nome da esquerda, outro da direita.”

Para Gonçalves, o abismo dilatou na medida em que o Brasil começou a importar as pautas da nova esquerda americana. Enquanto a política canhota tradicional se estruturava a partir do conceito de luta de classes, a ala caçula abraçou embates ligados à identidade, que passam por feminismo, antirracismo e causas LGBTQIA+.

“Se você perguntar para o evangélico se ele quer ter saúde e escola pública de qualidade, direitos trabalhistas como férias, ele vai dizer que sim. É dessa forma que a esquerda consegue se conectar com as igrejas”, diz o pastor. “Mas se você inicia um diálogo com temas transversais, ainda que eles tenham a sua importância, isso acaba fazendo surgir um identitarismo de maioria. Isso faz muito bem à direita.”

São ideias erguidas sobre dogmas religiosos e fake news, como a de que a família brasileira (só vale a versão heteronormativa) e a liberdade religiosa correm perigo.

Ainda que customizado com temperos locais, o padrão é global, afirma o cientista político Guilherme Casarões, professor da FGV. “Temos as tensões entre uma esquerda tradicional, focada na dimensão econômica e de classe, e uma identitária, preocupada com a garantia dos direitos de grupos vulneráveis.”

No Brasil, o PT busca sintetizar essas duas linhas, “ainda que enfrente dificuldades”. Nos EUA, por exemplo, há clivagens no Partido Democrata entre figuras como Bernie Sanders, velha guarda, e Alexandria Ocasio-Cortez, a nova geração.

“Vemos uma dificuldade das esquerdas em geral em mobilizar eleitores em torno de pautas amplas. A utopia do passado, representada pelo socialismo, foi substituída por sentimentos como medo, ódio e ressentimento, ativados de maneira eficiente pela extrema direita, em particular de corte populista.”

Casarões vê ainda obstáculos de comunicação. O polo antagonista foi hábil “na ocupação precoce dos espaços digitais”, diz. Já a esquerda pena para “construir narrativas amplas de apelo às massas, para além dos grupos com os quais tradicionalmente dialoga”.

“Ao mesmo tempo, tragados pela polarização, muitos passaram a equivaler conservadorismo e fascismo, ostracizando parcelas significativas da população.”

A filósofa Márcia Tiburi, filiada ao PT, sintetiza essa postura ao lançar “Como Conversar com um Fascista?”, título que rotula dessa forma quem vota no oponente ideológico, ou sugerir que o dom de falar em línguas, central na fé pentecostal, é fajuto e popular entre “pessoas que não tiveram acesso a uma cultura”, como disse ao UOL.

Desde que voltou à Presidência, Lula tem feito acenos a esse quinhão religioso, como enviar inédita carta para justificar sua ausência na Marcha para Jesus e apoiar a ampliação da isenção tributária às igrejas na Reforma Tributária. Evangélicos de correntes diversas convergem num ponto: todo cuidado é pouco para não parecer oportunista, dando vazão à anedota de que alguns gestos na política são como Copa do Mundo, só aparecem de quatro em quatro anos, para o show eleitoral.

“Se se quer levar a sério o mundo evangélico, há que partir de respeito e abertura para ouvi-lo”, diz a bispa metodista Marisa de Freitas. “Quando um setor só é considerado como mais um meio para suporte eleitoral, jamais será legitimamente abordado. E, constatando que foi ‘usada’ a partir da sua fé, pode tomar um formato de bumerangue, com energia imprevisível.”

Há ainda tropeços típicos de muitos que até ontem pareciam querer tapar o nariz se cruzassem com um fiel na rua. Walter Pinheiro, o pastor que alertou colegas da esquerda a não ignorarem a força dos templos, menciona a força-tarefa de ministros que Lula criou para se reaproximar do campo. A estratégia incluiu reparti-lo em quatro abas: tradicionais, pentecostais, neopentecostais e de periferia.

“Essa divisão já contém equívocos. A maioria dos pentecostais e neopentecostais está na periferia, então não faz sentido separar os segmentos.”

Também não vale, segundo Pinheiro, ignorar evangélicos progressistas (ele se vê aí) e outros personagens relevantes na construção das narrativas públicas dos evangélicos.

Exemplifica: “O Movimento Dunamis liderou [em 2020] um evento chamado The Send Brasil e conseguiu aglomerar muitos jovens em três estádios. Contou com a presença da Damares Alves e Bolsonaro. Lideranças dessas comunidades carismáticas independentes passam batido das análises, pois não têm a caricatura agressiva do Malafaia, mas influenciam muito a opinião dos evangélicos sobre a política.”

Autor de “Crônica de uma Tragédia Anunciada: Como a Extrema-Direita Chegou ao Poder” e colunista da Folha, Wilson Gomes se pergunta se o governo Lula será capaz de distensionar relações com o eleitorado conservador.

“É muito difícil imaginar que o governo e a militância lulista baixem a guarda e deixem de tratar o empresário que gera 30 empregos e luta para pagar impostos como ‘explorador’, de tratar o crente da periferia como ‘fundamentalista’, o setor rural como ‘fascista’. E do lado de lá virão predicados semelhantes, numa alimentação da inimizade que não parece ter fim.”

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